Eric Hobsbawm: "Me recuso a dizer que perdi a esperança"




Eric Hobsbawm
Eric Hobsbawm
O historiador Eric Hobsbawm - que tem sua trilogia (A Era das Revoluções, A Era do Capital e A Era dos Extremos) reeditada no Brasil - diz que o aniversário da queda do Muro de Berlim deveria motivar uma discussão sobre o Ocidente pós-guerra fria. Defendendo suas convicções marxistas, ele afirmou: "Me recuso a dizer que perdi a esperança". Para Hobsbawn, o capitalismo chegou ao seu limite. 

Quando Eric Hobsbawm estava escrevendo "A Era do Capital" -lançado em 1975-, explicou que fazia um imenso esforço para estudar algo que não lhe agradava nem um pouco. Hoje, o historiador marxista diz ter o mesmo sentimento, "eu não gostava da burguesia vitoriana e ainda não gosto, embora apreciasse o dinamismo daquele tempo". À essa impressão, porém, vem adicionando, nos últimos anos, mais uma, a nostalgia. 

"Agora, quando comparo o século 19 com o 20, sinto simpatia pelo modo como aqueles homens acreditavam no progresso. Foi um século de esperança. E essa minha nostalgia cresce à medida que o tempo passa e vejo, com pessimismo, o que vem acontecendo", diz. 

Hobsbawm, 92, conversou com a Folha por telefone, de Londres, justamente sobre a reedição no Brasil de sua trilogia sobre o século 19 ("A Era das Revoluções", "A Era do Capital", "A Era dos Impérios"), já um clássico da historiografia sobre o período, pela editora Paz e Terra -que também relançará em 2010 outro título do historiador, "Bandidos". 

Na trilogia, Hobsbawm analisou o que chamou de "longo século 19", período que vai de 1789 a 1914. Começa com as revoluções europeias que definiram a expansão do capitalismo e do liberalismo no planeta -a Francesa e a Industrial inglesa- e vai até as vésperas da Primeira Guerra Mundial. 

Apesar dos ataques que sofre por ainda defender a bandeira do comunismo, os três volumes de Hobsbawm são reimpressos todos os anos na Inglaterra, tendo sua explicação sobre o tema se imposto como uma espécie de cânone. 

Hobsbawm é com frequência procurado para comentar temas do presente -algo que seus críticos tampouco perdoam. Agora, às vésperas do aniversário de 20 anos da queda do Muro de Berlim (em novembro), seu conhecimento sobre os tempos que estudou e vivenciou, assim como suas convicções políticas, são novamente trazidos ao debate. 

"A queda do Muro foi o fim de uma era. Não só para a Europa do Leste, mas para o mundo inteiro. O capitalismo chegou a seu limite e a a crise econômica mundial indica claramente o fim de um ciclo." 

Contudo, o historiador considera que as discussões sobre o episódio estão muito centradas em tentar entender por que a experiência comunista fracassou, quando o que deveria estar na pauta é o futuro do Ocidente. Para ele, o mundo pós-Guerra Fria ainda não fez uma necessária autocrítica. 

Leia trechos da entrevista que Eric Hobsbawm concedeu à Folha: 

O que mais deveria ser discutido no aniversário de 20 anos da queda do Muro de Berlim? 

A celebração é oportuna porque o capitalismo agora chegou a seu limite. A crise econômica mundial é o fim de um ciclo, que começou a ruir quando caiu o Muro em Berlim. No Leste Europeu, vejo dificuldade em rompimento com o legado comunista. Mas é o Ocidente quem deve refletir mais sobre o que ocorreu na Guerra Fria e o que pode ser feito para evitar um novo colapso. 

As "Eras" são consideradas um exemplo de boa análise histórica dedicada a um amplo período. O sr. acha que falta ambição a historiadores hoje? 

Para fazer história com uma perspectiva maior, é preciso ser um intelectual maduro. Hoje, os jovens historiadores gastam muito mais tempo em suas especializações. Quando estão aptos a dar um passo maior, hesitam. A história equivocadamente se afastou da "história total" que fazia Fernand Braudel [1902-1985].
O sr. começa "A Era dos Impérios" contando uma história autobiográfica (a do encontro de seus pais no Egito) e então propõe uma reflexão sobre história e memória. Quão diferente foi escrever este volume, que se refere a passagens mais próximas do seu olhar no tempo, do que os anteriores?
Neste livro tive de trabalhar com o que chamo de "zona de penumbra", onde se misturam nossas lembranças e tradições familiares com o que aprendemos depois sobre determinado período. Não é fácil, pois trata-se de um território de incertezas e em que há um elemento afetivo. Por outro lado, trata-se de uma oportunidade de estimular aquele que lê a pensar sobre como seu próprio passado está relacionado com a história.
Em seu novo livro ("Reappraisals"), o historiador britânico Tony Judt escreveu um ensaio sobre o senhor ("Eric Hobsbawm and the Romance of Communism"). Neste, mostra admiração por seu conhecimento, mas faz uma severa crítica: "para fazer o bem no novo século, nós devemos começar dizendo a verdade sobre o antigo. Hobsbawm se recusa a mirar o demônio na cara e chamá-lo pelo nome". Como o sr. responderia a seu colega?
A crítica de Judt não se justifica. O que ele quer é que eu diga que estava errado. Em "A Era dos Extremos", eu encaro o problema, o critico e condeno. Não tenho problemas em dizer que a Revolução Russa causou dor e sofrimento à população russa. Porém, o esforço revolucionário foi algo heroico. Uma tentativa de melhorar a sociedade como não se viu mais na história. Me recuso a dizer que perdi a esperança.
O sr. havia dito, numa entrevista ao "Independent", que havia alguns clubes dos quais não iria ser sócio nunca, referindo-se aos intelectuais ex-comunistas. Ainda pensa assim?
Não vejo problema quando um intelectual, especialmente de países do Leste Europeu, percebe que a democracia é melhor do que o sistema autoritário em que vivia. É normal a mudança de posição quando surgem fatos novos. O ex-comunista que condeno é aquele que antes militava em grupos de esquerda e que hoje tem uma bandeira única, a de ser anticomunista apenas, esquecendo-se do resto das ideias pelas quais lutava. Também me entristece ver intelectuais jovens, que não passaram pela história dessas lutas, repetindo e tentando tirar benefício desse mesmo tipo de propaganda.
A América Latina está às vésperas de comemorar, em vários países, os 200 anos do início das lutas de independência. Que análise faz do atual momento?
A dependência econômica ainda é um fato, mas politicamente a América Latina é cada vez mais livre. Washington jamais voltará a exercer a influência de antes, tampouco a apoiar golpes ou ditaduras como fez no passado. O que está acontecendo em Honduras é um sinal disso. O Brasil tem papel central nesse processo, uma vez que o México se transforma cada vez mais em apêndice dos EUA.


Origem -
http://www.socialismo.org.br/portal/historia/148-entrevista/1149-eric-hobsbawm-qme-recuso-a-dizer-que-perdi-a-esperancaq

Artigo - Crise estrutural do capital e precarização do homem-que-trabalha



A verdadeira crise do nosso tempo histórico não é a crise das economias capitalistas, mas sim a crise do homem como sujeito histórico de classe, isto é, ser humano-genérico capaz de dar respostas radicais à crise estrutural do sociometabolismo do capital em suas múltiplas dimensões.  É importante salientar que crise não significa morte do sujeito histórico de classe, muito menos sua supressão irremediável, mas tão–somente a explicitação plena da ameaça insuportável à perspectiva de futuro, risco de desefetivação plena do ser genérico do homem e, ao mesmo tempo, oportunidade histórica para a formação da consciência de classe e, portanto, para a emergência da classe social de homens e mulheres que vivem da venda de sua força de trabalho e estão imersos na condição de proletariedade.
A crise é o momento em que se explicita, em sua dramaticidade histórica (e diriamos hoje, midiática), a “alienação” como um poder “insuportável”, isto é, um poder contra o qual homens e mulheres enquanto individualidades pessoais e sob determinadas condições, se insurgem ou se indignam na medida em que se torna perceptível, mesmo no plano da consciência contingente de classe, a sua condição de proletariedade.
Na Ideologia Alemã, de 1847, Karl Marx e Friedrich Engels, conseguiram apreender, com genialidade visionária, o que torna-se hoje cada vez mais perceptível no capitalismo global do século XXI:  a constituição de uma massa da humanidade como massa totalmente “destituída de propriedade” e que se encontra, ao mesmo tempo, em contradição com um mundo de riquezas e de cultura existente de fato. 
Para Marx e Engels, a explicitação plena da condição de proletariedade – e que está na raiz dos movimentos de jovens precários no mundo do capitalismo mais desenvolvido – pressupõem um alto grau de seu desenvolvimento das forças produtivas, que segundo eles, “con­tém simultaneamente uma verdadeira existência hu­mana empírica, dada num plano histórico-mundial e não na vida puramente local dos homens”.  E salientam: “Apenas com este desenvolvimento universal das forças produtivas dá-se um intercâmbio universal dos homens, em virtude do qual, de um lado, o fenômeno da massa ‘destituída de propriedade’ se produz simultaneamente em todos os povos (concorrência universal), fazendo com que cada um deles dependa das revoluções dos outros; e, finalmente, coloca indivíduos empiricamente univer­sais, histórico-mundiais, no lugar de indivíduos locais”.
Deste modo, é sob as condições históricas da crise do sujeito de classe que se coloca a oportunidade radical de sua afirmação objetiva e subjetiva, seja enquanto massa “destituida de propriedade”, seja enquanto indivíduos empiricamente universais, histórico-mundiais, no lugar de indivíduos locais” (não é desprezivel o papel da Internet com seus blogs alternativos e redes sociais – como facebook e twitter – na construção das individualidades histórico-mundiais).
Por outro lado, é importante salientar também que a crise estrutural do capitalnão significa incapacidade de crescimento (e expansão) da economia capitalista. Crise estrutural do capital não significa estagnação e colapso da economia capitalista mundial. Apesar da sua crise estrutural, o capital como sistema de acumulação de valor e modo estranhado de metabolismo social, tem-se expandido nos últimos trinta anos, apresentando, por exemplo, na passagem para o século XXI, índices exuberantes de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) nas fronteiras da modernização do capital (como Índia, China e Sudeste Asiático).
Apesar da crise financeira e crise das dívidas soberanas nos EUA e União Européia, em 2008 e 2011, é provável que, a curto ou médio prazo, as economias norte-americanas e europeias possam retomar, a duras custas, o crescimento do PIB. Entretanto, percebe-se cada vez mais que o crescimento do PIB não se traduz em bem-estar social. Pelo contrário, nas últimas décadas aumentou nos países ricos a precariedade do trabalho, a contenção dos gastos públicos, corte de direitos sociais e a corrosão do Estado-Providência. Portanto, torna-se visível, cada vez mais, a incapacidade estrutural do capital como modo de controle estranhado do metabolismo social e sistema produtor de mercadorias, em realizar suas promessas civilizatórias de desenvolvimento e bem-estar social, inclusive no núcleo orgânico mais desenvolvido do capitalismo histórico.
Portanto, o sentido radical da crise do nosso tempo histórico diz respeito à incapacidade da forma social do capital em conter (e realizar) as possibilidades de desenvolvimento do ser genérico do homem pressupostas pela nova materialidade sócio-técnica em virtude da degradação das condições materiais de reprodução humana, inclusive no pólo desenvolvido do capitalismo global. Este é mais um elemento compositivo do esgotamento histórico de um modo de controle do metabolismo social baseado na propriedade privada dos meios de produção social e divisão hierárquica do trabalho.
Na verdade, a crise estrutural do capital possui as características de uma “síndrome” social, isto é, de um “estado mórbido” caracterizado por um conjunto de sinais e sintomas associados a uma “condição social crítica”, suscetível de despertar reações de temor e insegurança global. Como salientou Antonio Gramsci em seus Cadernos do Cárcere, “a crise consiste no fato que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno verificam-se os mais variados fenômenos mórbidos” (é o que iremos tratar nos próximos artigos como sendo a barbárie social).
 A “condição crítica” da síndrome do capital é a convergência histórica de um conjunto de crescentes contradições sociometabólicas do sistema mundial do capital, principalmente a partir de meados da década de 1970. A principal delas diz respeito à contradição capital-trabalho, na medida em que é através do trabalho que o sociometabolismo do capital vincula os seres humanos à natureza: a aguda elevação da produtividade do trabalho em virtude do processo cumulativo do progresso técnico, tende a explodir a materialidade do valor-trabalho, uma “implosão” contínua e permanente no espaço-tempo comprimido do novo tempo histórico do capitalismo global. É por isso que o consumo de trabalho vivo de uma parte da força de trabalho torna-se irrelevante para o sistema do capital. (José Nun, um dos teóricos da CEPAL, irá chama-las de “massa marginal” e Robert Kurz, de “sujeitos monetários sem dinheiro”). Eis a raiz da ampliação persistente da precariedade social do trabalho no plano histórico-mundial.
Em 1863, nos Grundrisse, Karl Marx conseguiu apreender o traço radical do nosso tempo histórico, ao observar que, sob o capitalismo,  “o tempo é tudo, o homem já não é nada; é, quando muito, a carcaça do tempo”. Na verdade, são as “massas marginais”, os “sujeitos monetários sem dinheiro” ou ainda os homem-carcaças – a massa da humanidade “destituída de propriedade” – que estão se insurgindo nos riots dos bairros pobres de Londres ou nos movimentos sociais do precariato indignado que ocupa as praças de Lisboa e Madri.
Enfim, a crescente redundância do trabalho vivo e da força de trabalho é a “ponta do iceberg” de um sistema de metabolismo social baseado na precariedade social do trabalho e que expõe cada vez mais seus limites estruturais, demonstrando ser incapaz de conter o processo civilizatório humano-genérico.
Deste modo, podemos caracterizar a crise estrutural do capital como sendo, por um lado, no plano da objetividade social, pela (1) crise de formação (produção/realização) de valor, onde a crise capitalista aparece, cada vez mais, como sendo crise de abundância exacerbada de riqueza abstrata. Entretanto, temos salientado que o caráter radical da crise estrutural do capital, diz respeito a (2) crise de (de)formação do sujeito histórico de classe instaurado pelo estado de barbárie social. A crise de (de)formação do sujeito de classe é uma determinação tendencial do processo de precarização estrutural do trabalho que, nesse caso, aparece como precarização do homem-que-trabalha.
A precarização do trabalho não se resume àquilo que pensa a sociologia do trabalho, isto é, a mera precarização social do trabalho ou precarização dos direitos sociais e direitos do trabalho de homens e mulheres proletários. A precarização do trabalho implica também a precarização-do-homem-que-trabalha como ser humano-genérico (o que explica a pandemia de depressão e transtornos psicológicos do homem-que-vive-do-trabalho).
Sob o capitalismo global, a manipulação (ou “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital) assume proporções inéditas, inclusive na corrosão político-organizativa dos intelectuais orgânicos da classe do proletariado.  Com a disseminação intensa e ampliada de formas derivadas de valor na sociedade burguesa hipertardia, agudiza-se o fetichismo da mercadoria e as múltiplas formas de fetichismo social, que tendem a impregnar as relações humano-sociais, colocando obstáculos efetivos à formação da consciência de classe necessária e, portanto, à formação da classe social do proletariado.
O processo de dessocialização do proletariado, com impactos na consciência de classe e o poder da ideologia no bojo do capitalismo manipulatório com a intensificação do fetichismo da mercadoria devido a vigência do mercado na estruturação social, compôs um cenário qualitativamente novo de riscos de desefetivação do homem como ser capaz de dar respostas radicais à crise estrutural do sociometabolismo do capital em suas múltiplas dimensões. Deste modo, a barbárie se instaura como metabolismo social, isto é, constitui-se a barbárie social, uma nova dimensão da barbárie histórica dentro do capitalismo. 
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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para oBlog da Boitempo mensalmente, às segundas.

Artigo - Terceira modernidade do capital, crise de civilização e barbárie social

Golconda - Magritte



Por Giovanni Alves.
O sentido radical da crise do nosso tempo histórico diz respeito a incapacidade da forma social do capital em conter (e realizar) as possibilidades de desenvolvimento do ser genérico do homem pressupostas pela nova materialidade sócio-técnica em virtude da degradação das condições materiais de reprodução humana, inclusive no pólo desenvolvido do capitalismo global. Este é um traço indelével do esgotamento histórico de um modo planetário de controle do metabolismo social baseado na propriedade privada dos meios de produção social e divisão hierárquica do trabalho.
O que consideramos como crise estrutural do capital possui as caracteristicas de uma “sindrome” social, isto é, de um “estado mórbido” caracterizado por um conjunto de sinais e sintomas associados a uma “condição social crítica”, suscetível de despertar reações de temor e insegurança global. É o que temos denominado de sociometabolismo da da barbárie ou barbárie social.
Na verdade, vivemos uma nova era civilizatória que inaugura a terceira modernidade do capital. Sob as condições da barbárie social, o capitalismo histórico altera qualitativamente a dinâmica da luta de classes, que se contrasta, por exemplo, com a dinâmica histórica inscrita na segunda modernidade do capital, caracterizada pela lógica cultural do modernismo.
O capital adquire sua dimensão real tão-somente a partir da segunda modernidade, ou seja, a instauração do modo de produção capitalista propriamente dito. Constitui-se a grandeindústria com o sistema de máquinas que põe a subsunção real do trabalho ao capital. Esta importante inflexão histórica propiciou um salto qualitativamente novo na dinâmica civilizatória do capital. É possível dizer que, com a segunda modernidade do capital, que tem inicio com a Primeira Revolução Industrial, a partir do século XIX, e que prossegue até a última metade do século XX, o capital se consolida como sistema planetário, ou seja, sistema de controle do metabolismo social global. É nesse período histórico que se constitui o mercado mundial e todas as determinações sociais descritas num impressionante vigor literário por Karl Marx e Friedrich Engels n´O Manifesto Comunista, de 1848.
A segunda modernidade do capital é a modernidade-máquina, temporalidade histórica em que se constituiu um estilo de pensamento, de política e de sensibilidade estética que poderíamos caracterizar como modernista. Foi nessa etapa de desenvolvimento do capitalismo ocidental, no bojo do qual se desenvolveu o processo de modernização que constituiu-se a classe social(burguesia e proletariado) e o Estado nacional em torno da qual se consolida oterritório propriamente dito da Nação e da Cidade. São tais determinações essenciais que irão compor a identidade social de homens e mulheres da segunda modernidade. Enfim, a segunda modernidade é a modernidade propriamente dita.
Por modernidade entendemos um conjunto de experiências de vida: experiência do espaço e do tempo, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida, que é hoje em dia compartilhado por homens e mulheres em toda parte do mundo. Assim, desde o século XVI, constitui-se no Ocidente a modernidade do capital, que assume diversas formas histórico-temporais, por conta do desenvolvimento do modo de produção capitalista.
Diremos com Marshall Berman, no seu livro clássico “Tudo que é sólido se desmancha no Ar”, que “ser moderno é encontrarmo-nos em um meio-ambiente que nos promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de nós mesmos e do mundo – e que, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que conhecemos, tudo o que somos. Ambientes e experiências modernos atravessam todas as fronteiras de geografia e de etnias, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia; neste sentido, pode-se dizer que a modernidade une todo o gênero humano. Mas é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: envolve-nos a todos num redemoinho perpétuo de desintegração e renovação, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é ser parte de um universo em que, como disse Marx, ´tudo o que é sólido se desmancha no ar´”. Esta percepção de Marshal Berman é a percepção aguda da modernidade clássica, a segunda modernidade do capital, a modernidade da grande indústria e do modernismo, que irá expor a forma essencial deste processo de modernização do capital.
Por “modernismo”, que se vincula a esta segunda modernidade, entendemos como sendo, de acordo com Perry Anderson (no livro “As origens da pós-modernidade”), “a espantosa variedade de visões e idéias que visam a fazer de homens e mulheres os sujeitos, ao mesmo tempo que os objetos, da modernização, a dar-lhe o poder de mudar o mundo que os está mudando, a abrir-lhes caminho em meio ao turbilhão e apropriar-se dele”. Deste modo, o modernismo como lógica cultural da segunda modernidade do capital, são visões e valores carentes de utopia social. Enfim, são visões culturais e políticas que emergem no período de ascensão histórica do capital. O modernismo é o espírito político-cultural da segunda modernidade do capital.
Deste modo, podemos distinguir a primeira modernidade do capital, que transcorreria do século XVI à última metade do século XVIII e seria caracterizada pela ascensão histórica do capitalismo comercial e capitalismo manufatureiro. Neste período de constituição do capitalismo moderno, as sociedades européias ainda estavam imersas em relações sociais tradicionais, marcadas pela dominação de classe aristocráticas e agrárias, ainda não subsumidas à lógica do capital industrial, mas apenas à lógica do capital mercantil.
A segunda modernidade do capital seria a modernidade da Primeira e Segunda Revolução Industrial, do surgimento da grande indústria, do modo de produção capitalista propriamente dito, da subsunção real do trabalho ao capital, da transição dolorosa e luminosa para a última modernidade do capital, a terceira modernidade.
A terceira modernidade do capital seria a modernidade tardia, a modernidade sem modernismo, ou a modernidade pós-modernista. É a modernidade do espírito do toyotismo que explicita um nova implicação sociometabólica da produção social: a maquinofatura em contraste com a manufatura ea grandeindústria. A terceira modernidade é a modernidade do capitalismo manipulatório e da crise estrutural do capital. É a modernidade da predominância do capital financeiro sobre as demais frações do capital. A terceira modernidade seria a modernidade do precário mundo do trabalho e da barbárie social. Enfim, com a terceira modernidade nos inserimos noutra temporalidade histórica do capital, com impactos decisivos na objetividade e subjetividade da classe dos trabalhadores assalariados e do trabalho vivo. Com a terceira modernidade altera-se a dinâmica histórica da luta de classes na medida em que está posta a precarização do homem-que-trabalha como um traço indelével da nova precariedade salarial.
Apesar de estarmos inseridos na temporalidade histórica da terceira modernidade do capital, somos constrangidos ainda, no plano da memória histórica e da imagem social, pela segunda modernidade do capital, a modernidade do modernismo, a modernidade da forma cultural prenhe de projetos de utopias concretas (como diria Ernst Bloch).
Enquanto a primeira modernidade do capital era prenhe de utopias abstratas, como a de Thomas Morus (“A Utopia”) ou de Tomazo di Campanella (“Cidade do Sol”); ou mesmo de Charles Fourier e Robert Owen; a segunda modernidade do capital nasce com o proletariado industrial e os projetos sociais do comunismo político em meados do século XIX no bojo da crise de 1848, aprimeira grande crise do capitalismo ocidental. Seu marco histórico maduro são as revoluções sociais de 1848, evento crucial que inspirou o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. As revoluções sociais de 1848 abrem um novo período histórico da luta de classes.
O processo social da segunda modernidade do capital é caracterizado pelo espírito do modernismo, isto é, o conjunto de doutrinas e práticas estéticas e políticas amplamente heteróclitas, assincrônicas e intrinsecamente contraditórias, como a própria modernização do capital no período de sua ascensão histórica. Neste período, temos a ascensão e crise do Estado social, com seus partidos e sindicatos de classe e com os projetos de utopias sociais caracterizados pelo comunismo histórico e pela social-democracia clássica. Constituiu-se o mundo do trabalho organizado cuja dinâmica da luta de classes propiciou uma precariedade salarial caracterizada pelo emprego estável dos trabalhadores assalariados organizados. É o período histórico das conquistas sociais do trabalhismo organizado, da legislação do trabalho e do Welfare State. Nele vigoram como estilo cultural e político da subjetivação de classe, tanto o reformismo social-democrata, quanto o comunismo político como forças estruturantes da defensividade do trabalho.
Na temporalidade histórica da segunda modernidade do capital ocorre o surgimento e desenvolvimento dos Estados nacionais, com destaque para a constituição hegemônica dos Estados Unidos como nação moderna, de crise européia, dos conflitos imperialistas, da Primeira e Segunda Guerra Mundial, da colonização, descolonização e ocidentalização do Terceiro Mundo, da indústria cultural, da modernização avassaladora em todas as instâncias da vida social (o que só ocorreria após a Segunda Guerra Mundial). Enfim, é um período de intensa “destruição criativa”, último período histórico de ascensão do capital, uma ascensão de destruição de modos de vida tradicionais vinculados à dominação de classes aristocráticas e agrárias, que só ocorreriam de vez após as duas guerras mundiais que atingiram o Continente Europeu (é tal transição do tradicional para o moderno que iria dar aquela sensação de ambigüidade típica do modernismo – euforia e rebeldia, tão típica dos movimentos culturais modernistas, do surrealismo ao rock and roll dos The Beatles).
A crise da segunda modernidade do capital ocorre em meados da década de 1960, década de transição, que anunciaria, no centro do sistema do capital, a passagem para a terceira modernidade, modernidade tardia ou modernidade sem modernismo. Ela irá se compor na medida em que se dissolvem as coordenadas históricas compositivas do modernismo.
Nos primórdios do século XXI vivemos sob a terceira modernidade que inaugura a temporalidade histórica da crise estrutural do capital com implicações qualitativamente novas na dinâmica da luta de classes, na medida em que se altera o processo social de subjetivação de classe.
A mundialização do capital e a vigência do regime de acumulação predominantemente financeirizado; as políticas neoliberais, a acumulação flexível e o espírito do toyotismo; e a instauração da sociedade em rede a partir da revolução informacional no bojo do capitalismo manipulatório, colocam novas determinações concretas no processo de formação (e luta) da classe social do proletariado.
Por um lado, amplia-se a condição de proletariedade que, com a nova precariedade salarial, incorpora as camadas sociais ditas de “classe média”. A nova precariedade salarial que inaugura a “nova questão social” (Robert Castel), explicita a precarização estrutural do trabalho como um traço compositivo ineliminável da npva dinâmica do capitalismo global. Por outro lado, a precarização do homem-que-trabalha, traço indelével da nova precariedade salarial, com a dessubjetivação de classe, “captura” da subjetividade e redução do trabalho vivo a força de trabalho, colocam obstáculos efetivos à formação da consciência de classe e, portanto, à formação do sujeito histórico do proletariado como classe social.
Deste modo, o nosso conceito de barbárie social diz respeito a condição social crítica qualitativamente nova que surge na terceira modernidade do capital e que coloca obstáculos efetivos à formação do sujeito histórico de classe. Na verdade, ocorre um processo de deformação da classe pari pasu à crise de formação contraditória do valor no bojo da crise estrutural do capital (formação contraditória no sentido de que a crise de formação do valor se põe no bojo da disseminação da forma-valor pela vida social).
Com a nova precariedade salarial, que contém no seu bojo o estado de barbárie social, inaugura-se, deste modo, a era de crise social como crise de civilização, caracterizada, no plano sociometabolico, pela crise da vida pessoal, crise de sociabilidade e crise de auto-referencia pessoal. A terceira modernidade, com o sociometabolismo da barbárie, que reduz tempo de vida a tempo de trabalho, coloca em questão, de modo qualitativamente novo, o devir humano dos homens.
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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.


Fonte -
http://boitempoeditorial.wordpress.com/2011/09/26/terceira-modernidade-do-capital-crise-de-civilizacao-e-barbarie-social/

Artigo : Florestan Fernandes


O sociólogo não só refletiu sobre a escola brasileira, apontando seu caráter elitista, como atuou pessoalmente em defesa da educação para todos

Texto Márcio Ferrari

Frase de Florestan Fernandes:

"Na sala de aula, o professor precisa ser um cidadão e um ser humano rebelde"

Florestan Fernandes nasceu em 1920 em São Paulo, filho de uma imigrante portuguesa analfabeta, que o criou sozinha, trabalhando como empregada doméstica. Aos 6 anos, Florestan também começou a trabalhar, primeiro como engraxate, depois em vários outros ofícios. Mais tarde, ele diria que esse foi o início de sua aprendizagem sociológica, pelo contato que teve com os habitantes da cidade. Aos 9 anos, a necessidade de ganhar dinheiro o fez abandonar os estudos, que só recuperaria com um curso supletivo. Aos 18, foi aprovado para o curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo e, por essa época, iniciou sua militância em grupos de esquerda. Depois do golpe militar de 1964, Florestan enviou uma carta à polícia protestando contra o tratamento dado a seus colegas presos e foi, ele também, para a prisão. Em 1969 foi cassado pelo regime militar. Sem poder trabalhar, deixou o Brasil e lecionou em universidades do Canadá e dos Estados Unidos. Depois da redemocratização, filiado ao Partido dos Trabalhadores, elegeu-se deputado federal em 1986 e 1990. Florestan morreu em 1995, de câncer. Publicou quase 80 livros durante a vida, nos campos da sociologia, da antropologia e da educação. A Revolução Burguesa no Brasil e Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento estão entre os títulos mais importantes.

Florestan Fernandes foi um dos mais influentes sociólogos brasileiros, mas muitos o chamavam de educador sem saber que isso o incomodava em sua modéstia. O equívoco tinha razão de ser. Vários escritos de Florestan tiveram a educação como tema e sua atuação na Câmara dos Deputados, já no fim da vida, se concentrou na área do ensino. Além disso, a preocupação com a instrução era um desdobramento natural de sua obra de sociólogo. "Em nossa época, o cientista precisa tomar consciência da utilidade social e do destino prático reservado a suas descobertas", escreveu.

Como o italiano Antonio Gramsci (1891-1937), Florestan militava em favor do socialismo e não separava o trabalho teórico de suas convicções ideológicas. Ainda que com abordagens diferentes, ambos acreditavam que a educação e a ciência têm, potencialmente, uma grande capacidade transformadora. Por isso, deveriam ser instrumentos de elevação cultural e desenvolvimento social das camadas mais pobres da população. "Um povo educado não aceitaria as condições de miséria e desemprego como as que temos", disse ele em entrevista a NOVA ESCOLA em 1991. "A escola de qualidade, para Florestan, não era redentora da humanidade, mas um instrumento fundamental para a emancipação dos trabalhadores", diz Ana Heckert, docente da Universidade Federal do Espírito Santo.

Florestan tomou para si a tarefa de romper com a tradição de pseudoneutralidade das ciências humanas e reconstruir uma análise do Brasil abertamente comprometida com a mudança social. Segundo sua análise, uma classe burguesa controlava os mecanismos sociais no Brasil, como acontecia em quase todos os países do Ocidente. No entanto - por causa de fatores históricos como a escravidão tardia, a herança colonial e a dependência em relação ao capital externo -, a burguesia brasileira era mais resistente às mudanças sociais do que as classes dominantes dos países desenvolvidos.

Revolução incompleta

Segundo Florestan, a revolução burguesa, cujo exemplo emblemático é a de 1789 na França, não teria se completado no Brasil. Enquanto os revolucionários franceses do século 18 exigiam ensino público e universal, as elites brasileiras do século 20 ainda queriam controlar a educação para manter a maioria da população culturalmente alienada e afastada das decisões políticas. Por isso, uma das principais lutas de Florestan foi pela manutenção e pela ampliação do ensino público. "Ele acreditava que o sucateamento da escola, com péssimas condições de trabalho e estudo, fazia parte das tentativas de sufocar a democratização da sociedade por meio da restrição do acesso à cultura e à pesquisa", diz a pesquisadora Ana Heckert.

O Brasil, dizia o sociólogo, era atrasado também em relação ao que ele chamava de cultura cívica, ou seja, um compromisso em torno do mínimo interesse comum. Para Florestan, não havia tal cultura no Brasil por dois motivos: ela estimularia as massas populares a participar politicamente e ao mesmo tempo tiraria das classes dominantes a prerrogativa de fazer tudo o que quisessem sem precisar dar satisfações ao conjunto da população.

Florestan bateu-se também pela democratização do ensino, entendendo a democracia como liberdade de educar e direito irrestrito de estudar. Em seus dois mandatos de deputado federal, nos anos 1980 e 1990, o sociólogo esteve envolvido em todos os debates mais importantes que ocorreram no Congresso no campo da educação. Participou ativamente da discussão, elaboração e tramitação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que só seria aprovada em 1996, um ano depois de sua morte.

Florestan defendia propostas mais radicais do que as que acabaram incluídas na lei aprovada, cujo mentor foi o antropólogo e senador Darcy Ribeiro (1922-1997). O sociólogo propunha que a lei incluísse o princípio de escola única, que abrangesse Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, conjugada com educação profissional, e possibilitasse uma escolaridade maior aos setores carentes da população. Florestan também pretendia, como meio de dar autonomia às escolas, que os diretores fossem eleitos por professores, pais e alunos. Ele queria ainda incluir na LDB um piso salarial para os professores.

Contra o autoritarismo

Não eram só as condições estruturais do sistema educacional que atraíam a atenção rigorosa do cientista social. No intervalo democrático entre 1945 e 1964 no Brasil, Florestan notou que a educação havia ganho papel crucial na busca "do equilíbrio e da paz social", mas isso se devia a conquistas sociais e não a políticas dos governos, que, segundo ele, continuavam não investindo em educação pública. Além da destinação de verbas, o passo mais urgente então seria integrar as escolas para que sua função progressista se multiplicasse e ganhasse solidez. Ao lado do trabalho propriamente didático, as escolas deveriam formar "um sistema comunitário de instituições sociais".

Ele também se preocupou em criticar a prática em sala de aula, com ênfase em três pontos: a concepção do professor como mero transmissor do saber, que, para ele, fragilizava o profissional da educação; a idéia de que o aluno é apenas receptor do conhecimento, quando o aprendizado deveria ser construído conjuntamente na escola; e o ensino discriminatório, que trata o aluno pobre como cidadão de segunda classe. "Para Florestan Fernandes, a educação transformadora se faz com uma escola capaz de se desfazer, por si mesma, do autoritarismo, da hierarquização e das práticas de servidão", diz Ana Heckert.

A briga política pela escola pública

Muitos intelectuais participaram, nas décadas de 1940 e 1950, da Campanha em Defesa da Escola Pública, que teve origem nas discussões para a aprovação da primeira LDB. Nenhum foi mais ativo do que Florestan Fernandes. De início, o tema principal do debate era a centralização ou descentralização do ensino. A polêmica seguiu acirrada até que, em seu ponto máximo de tensão, o deputado Carlos Lacerda apresentou no Congresso um substitutivo para atender aos interesses das escolas particulares e das instituições religiosas de ensino, que pretendiam ganhar o direito a embolsar verbas do Estado. Florestan publicou nessa época vários escritos em que combatia as pretensões da escola privada e também desenvolvia suas idéias sobre a necessidade de democratizar o ensino. O substitutivo de Lacerda acabou sendo aprovado. Mas, no longo prazo, quem ganhou foi Florestan - suas idéias são, hoje, praticamente consenso entre os dirigentes da educação pública.

Para pensar

Florestan Fernandes acreditava que a educação deveria ser, para os alunos, uma experiência transformadora que desenvolvesse a criatividade, dando condições de se libertar da opressão social.

Mas, para isso, a escola deveria deixar de reproduzir os mecanismos de dominação de classe da sociedade. Você já se analisou sob esse ângulo? Será também que, vez ou outra, já não confundiu a legítima autoridade do professor com autoritarismo.


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