Entrevista : Mario Sergio Cortella

O professor comenta a federalização do ensino, a progressão continuada, piso salarial, formação docente e outras questões da Educação brasileira
19/12/2008 



Foto: Raul Junior

O filósofo Mario Sergio Cortella diz que o trabalho do professor é mais que um emprego, é fonte de vida

Aos 7 anos de idade, o professor Mario Sergio Cortella teve hepatite, o que o obrigou a ficar em repouso por longos 4 meses. Para se distrair, começou a participar de programas de rádio. Aos 14, já comandava missas praticamente sozinho. O gosto pela mídia e por falar em público encontrou-se mais tarde com paixão pela Filosofia e pela docência. Mario Sergio graduou-se e logo foi convidado a lecionar na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde já está há 32 anos. O orientador de seu doutorado foi Paulo Freire, com quem Cortella trabalhou na prefeitura de São Paulo, durante o governo de Luiza Erundina. Sobre sua carreira como professor, ele diz: "Para mim, a docência é um gosto, um prazer, um modo de ser humano." Em entrevista concedida à repórter Eliane Scardovelli, para o projeto EDUCAR PARA CRESCER, o professor fala sobre o convívio com Paulo Freire, o dilema de colocar ou não os filhos em escola pública, a democratização do ensino, o papel da escola e outras questões fundamentais da Educação brasileira.

1. Quais são os principais problemas da Educação no Brasil?






Mario Segio Cortella: Temos quatro problemas principais.
 1) Apesar da democratização do acesso à escola - 97% das crianças de 7 a 14 anos estão no Ensino Fundamental - ainda não houve a democratização da permanência. O nível de evasão escolar, ou, como diria Paulo Freire, de expulsão escolar, é muito alto. Mesmo a democratização do acesso ainda não chegou à Educação Infantil nem ao Ensino Médio. A Educação básica é um direito subjetivo constitucional, tem de ser oferecida em seu conjunto. É alta também a distorção idade-série, ou seja, muitos alunos não estão na série correspondente à sua idade.
 2) A comunidade escolar (pais, alunos, professores e funcionários) precisa se apropriar do trabalho pedagógico como protagonista, não apenas como expectadora. Isso ainda é raro.
 3) A qualidade do ensino tem de melhorar e ascender a uma sólida base científica, de formação de cidadania e de solidariedade social. Isso exige um contrato de condições de trabalho diferente para os educadores e um sistema nacional de formação docente, que, aliás, está sendo organizado pelo Ministério da Educação.
4) Cerca de 10% dos adultos brasileiros adultos são analfabetos. É uma vergonha para um país que é a 10ª economia do planeta.



2. Investimos pouco em Educação?



Mario Segio Cortella: Sim. As questões que listei como problemáticas na Educação não dependem apenas do orçamento, mas dependem dele também. Se não chegarmos a 2020 investindo pelo menos 7% do PIB não conseguiremos vencer essas barreiras. Nós estamos em um patamar de mais ou menos 4,2% do PIB, o que equivale ao investimento de países de primeiro mundo, mas eles estão em velocidade de cruzeiro, precisam de recursos para a manutenção. Nós precisamos de arranque.



3. A progressão continuada é um bom caminho para resolver o problema da distorção idade-série e promover a democratização da permanência?



Mario Segio Cortella: Sim, mas não como está hoje. Defendo a progressão em forma de ciclos, não aquela que pode ser identificada como aprovação automática. A Lei de Diretrizes e Bases estabeleceu dois ciclos no Ensino Fundamental - de 1ª a 4ª e de 5ª a 8ª. Agora, com o EF de 9 anos, torna-se mais necessário trabalhar com o mínimo de 3 ciclos, de 3 anos cada. A finalidade da progressão continuada não é de facilitar a aprovação, mas sim de dificultar a reprovação burra, que acontece por falha da estrutura da escola. No Brasil, a seriação produz mais desalento do que efetividade. Quando havia estrutura seriada em todas as redes, não se percebia que as crianças chegavam à 8ª série sem estar alfabetizados direito, porque elas simplesmente não chegavam até lá. O sistema praticamente expelia o aluno. Com a progressão continuada, a criança com defasagem pelo menos é vista.



4. Fala-se muito em qualidade da Educação. O que isso significa?



Mario Segio Cortella: Qualidade não pode ser uma palavra abstrata, é aquilo que vai servir para a cidadania, para o trabalho, para existir melhor. Numa democracia, a qualidade tem de ser social. Qualidade social pressupõe quantidade total. Qualidade sem quantidade é privilégio. Devemos democratizar o acesso e a permanência para todos os níveis de ensino e, ao mesmo tempo, melhorar a qualidade da Educação. Não existe um único caminho para resolver os problemas de educação. Hoje, há sérias lacunas, tanto no ensino público quanto no privado. De maneira geral, a Educação brasileira ainda é muito ostentatória, muito mais apoiada na informação do que no conhecimento. Informação é cumulativa, conhecimento é seletivo. Nossas escolas têm uma herança colonial muito forte, o ensino era privilégio das elites. Para quem já tem suas condições de vida resolvidas, o conteúdo trabalhado é meramente acessório.



5. Alguns economistas defendem que, ao melhorar a Educação, melhora-se a economia e todos se beneficiam...



Mario Segio Cortella: O Brasil é a 10ª maior economia do planeta e, segundo o ranking da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), uma das piores no ranking mundial de Educação. Se essa relação fosse tão automática, não seríamos um país em condições de miserabilidade educacional. Indepentemente disso, os economistas não são nossos adversários, são nossos parceiros. É preciso que eles apontem mais diretamente e divulguem para a sociedade como se dá esse "milagre brasileiro".



6. A escola abarca muitos problemas sociais do país. Ela deixa de lado a função primeira de educar?



Mario Segio Cortella:  Com o adensamento das metrópoles e o aumento da pobreza nos últimos 30 anos, a Educação escolar assumiu o papel de rede de proteção social. As funções foram se acumulando. Apesar de não conseguir dar conta de tudo, a escola é a mais forte instância republicana que temos. O cidadão recebe dela um apoio do aparelho público que não encontra em nenhum outro lugar. Muitas vezes, em áreas de periferia, as crianças não têm nem       certidão de nascimento. Só se dá falta dela pela ausência na hora da chamada. A escola pública hoje funciona como um colchão que segura muito do nosso cotidiano. Quem é de classe média não tem muita idéia do que isso significa. Muitos acham que é assistencialismo, mas temos de ter cuidado. Tudo o que é oferecido ao povo que vem do orçamento público não é doação, é devolução.


7. Quais as principais conquistas do Brasil no campo da Educação nos últimos 10 anos?

Mario Segio Cortella: Tivemos um avanço na democratização do acesso de crianças de 7 a 14 anos no Ensino Fundamental. O número de jovens e adultos analfabetos diminuiu, mas continua alto. A comunidade passou a se envolver mais com os trabalhos educacionais, em função da formação de conselhos de escolas, colegiados e conselhos municipais de Educação. Também foram    estruturadas formas de avaliação e de planejamento que não tínhamos antes. Isso não nos coloca em mundo triunfalista, mas também não é catastrófico. Estamos no caminho certo. Os últimos anos foram decisivos para a melhoria da educação pública, e isso ganha uma relevância enorme se pensarmos que 87% das vagas no Brasil de Educação básica estão nas escolas públicas.


8. Como foi o seu convívio com Paulo Freire?

Mario Segio Cortella: Mesmo antes de conhecê-lo pessoalmente, li textos de sua autoria, como “A Pedagogia do Oprimido”, “Educação como prática da liberdade” e “Cartas de Guiné Bissau” logo nos primeiros anos da faculdade de Filosofia. Por conta da ditadura militar, Paulo Freire ficou exilado de 1964 a 1979. Em 1980, começou a dar aulas na PUC-SP, onde eu já era docente. Também nessa época foi fundado o PT, e passamos a militar no partido. Em 1989, Luiza Erundina foi eleita prefeita da cidade de São Paulo, e Paulo Freire foi escolhido para secretário de Educação. Eu fui o secretário-adjunto por dois anos, e assumi a secretaria quando Paulo Freire deixou o cargo. Em seguida, foi meu orientador de doutorado, quando tivemos uma convivência mais direta, cotidiana, o que foi extremamente educativo e prazeroso para mim.


9. Que legado Paulo Freire deixou para o Brasil?

Mario Segio Cortella: Ele nos ensinou a capacidade de recusar a falência da esperança, de não fazer a autópsia dos temas que envolvem a Educação, mas sim a biópsia. Ou seja, melhorar o que está incorreto. Ele criou o viés político do trabalho pedagógico, política não no sentido partidário, mas como ação na sociedade. Paulo Freire entendeu a relação professor-aluno a partir do universo vivencial do aluno e trouxe uma metodologia inédita dentro das perspectivas educacionais. Ele é o brasileiro com o maior número de títulos de Doutor Honoris Causa da nossa História, um dos maiores educadores.


10. Seus três filhos estudaram em escola pública?

Mario Segio Cortella: O caçula não estudou em escola pública, mas os dois filhos mais velhos sim. Pedro, o mais novo, só foi para uma escola particular porque, na época, o governo do Estado deu início a uma política de progressão continuada sem o acompanhamento pedagógico necessário, então a qualidade do ensino caiu. Hoje, não teria dúvida em colocar um filho em escola pública. Não pela qualidade técnica, embora existam excelentes escolas não-pagas, mas pela convivência social. A escola pública oferece outras dimensões da vida coletiva. Muitas instituições particulares formam pessoas predatórias, excessivamente competitivas e materialistas. A escola que classifico como ruim não é só a que tem baixa qualidade cientifica, é a que também não se preocupa com questões sociais e de cidadania.


11. A carreira do professor é atrativa?

Mario Segio Cortella: Depende do que se entende por sucesso na carreira. No Brasil, há cerca de 500 mil jovens fazendo magistério. Levando em conta que o professor tem uma remuneração muito baixa, trabalha muito, precisa dar aulas em mais de uma escola para se manter - o que Paulo Freire chama de sã loucura - esse é um número significativo. Dá prazer exercer uma atividade que envolve compartilhar conhecimento. A questão salarial importa, mas não é o único objetivo de alguém nesse campo. Do ponto de vista da remuneração, compensa mais manter a barraquinha de cachorro-quente na porta da escola do que ser docente. É preciso distinguir emprego de trabalho. Emprego é fonte de renda, trabalho é fonte de vida. Ser professor é um trabalho. O magistério é um jeito de existir, é uma possibilidade de ser.


12. Como está a formação dos docentes?

Mario Segio Cortella: Bastante deficiente. Nos últimos 30 anos, os serviços de saúde, habitação, transporte e educação explodiram em termos de demanda. Os salários dos docentes foram reduzidos. À medida que a escola pública foi se tornado realmente pública, houve uma redução das condições de trabalho, e a nossa formação docente ficou prejudicada. A boa formação se dá quando é possível ir ao cinema, ao teatro, comprar livros, ler jornais, fazer cursos e quando você não se cansa demasiadamente por dar aulas em três escolas para poder sobreviver.


13. O ex-ministro Paulo Renato afirmou que há um movimento de federalização do ensino, de centralização de questões da Educação no governo federal. Estamos nesse caminho?

Mario Segio Cortella: Isso pode acontecer, e é uma boa idéia. Precisamos concentrar algumas questões nas mãos do governo federal. É necessário, por exemplo, organizar um sistema nacional de formação docente e de avaliação do trabalho que é feito nas escolas. Essa concentração evita a dispersão e garante a autonomia das unidades federativas. Não temo essa marca de federalização que está a caminho. Vários países possuem sistemas nacionais de Educação, coisa que o Brasil não tem, mas precisa ter. O deputado Paulo Renato está certo ao identificar sinais de federalização. Ele é contra, eu sou a favor.


14. Qual sua resposta para os estados e municípios que reclamam que o piso salarial não cabe no orçamento?

Mario Segio Cortella: Quando estados e municípios reclamam da criação do piso salarial com a justificativa de que fere a autonomia administrativa, eles não priorizam a Educação. Prioridades são transformadas em orçamentos, senão ficamos apenas nas boas intenções, nas mudanças cosméticas. Durante anos, advogou-se no Brasil a necessidade de um piso salarial nacional. Quando finalmente é implantado, dizem que não podem fazê-lo...


15. Como tornar o acesso à universidade pública menos elitizado?

Mario Segio Cortella: Precisamos melhorar a Educação básica e a Educação de jovens e adultos. Pais bem alfabetizados fazem toda a diferença na formação das crianças, e as motivarão a continuar estudando. O Brasil deve também reservar cotas em universidades públicas para aqueles que vieram da rede pública. O governo federal aumentou o número de vagas no Ensino Superior público, mas 74% das cadeiras ainda são oferecidas pelas faculdades privadas. A oferta de vagas por instituições públicas precisa ser maior ainda.


16. Os recursos do governo federal devem ser prioritariamente destinados às faculdades públicas ou privadas?

Mario Segio Cortella: A prioridade deve ser investir em instituições de Ensino Superior públicas, depois nas universidades comunitárias, que são aquelas que não têm fins lucrativos, e, por último, nas faculdades privadas, que fazem do ensino um negócio. Não sou contra o ProUni, mas defendo essa ordem de prioridade.


17. Qual sua opinião sobre os recentes índices da Educação, como o IDEB?

Mario Segio Cortella: Os indicadores são positivos, mas não basta constatar problemas. Não podemos ser apenas admiradores de termômetros. Eles escancaram a situação, mas lembremos: a janela não é culpada pela paisagem. Muita gente grita contra o índice, mas a questão central é o que ele mostra.


18. O senhor usa muito o termo pedagocídio nos seus textos – que seria, grosso modo, atribuir ao professor toda a culpa pelo fracasso escolar no Brasil. A adoção de políticas de bônus por desempenho é um pedagocídio?

Mario Segio Cortella: Sim. Vou ilustrar minha posição com um exemplo. Durante a minha gestão como secretário em São Paulo, havia um concurso de banda de fanfarras. As escolas das áreas centrais ganhavam todos os anos. As escolas de periferia tinham bandas com menos instrumentos e nunca saíam vencedoras. Isso é avaliar por desempenho? Não: é premiar os grupos mais favorecidos. Sou a favor da meritocracia, mas ela nunca será adequada enquanto não houver igualdade de condições no ponto de partida. Eu só posso avaliar os professores por desempenho se eles tiverem a mesma oferta de condições de melhoria.


Origem :
http://educarparacrescer.abril.com.br/politica-publica/entrevista-mario-sergio-cortella-410464.shtml

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