Resenha : Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.

Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica.


Pp. 152
ISBN 85-86583-44-8

Resenhado por Eliza Bartolozzi Ferreira
Universidade Federal de Minas Gerais



21 de febrero de 2003


Resumo
O livro de Tomaz Tadeu da Silva apresenta uma síntese relevante das discussões sobre as teorias do currículo decorridas no século XX. O autor utiliza-se da classificação das teorias em tradicionais, críticas e pós-críticas, centrando-se, na maior parte da obra, na análise das teorias pós-críticas. O estudo registra as preocupações das teorias críticas e pós-críticas com as conexões entre saber, identidade e poder. Esta é uma obra que traz a discussão de qual conhecimento da sociedade (e relações de poder) o currículo desenvolve por meio da educação, no contexto da pós-modernidade.

Abstract
This book, by Tomas Tadeu da Silva, presents a relevant synthesis of the discussion of curriculum theories during the 20th century. The author classifies the theories as traditional, critical and post-critical, focusing the analysis on the post-critical theories. The study registers the attention given by critical and post-critical theories to the connection between knowledge, identity and power. Silva’s work opens the discussion of what knowledge (and relationships of power) the school curriculum develops by means of education in the context of post-modernity.


Publicado no final da década de 1990, o livro de Tomaz Tadeu da Silva apresenta uma síntese relevante das discussões sobre as teorias do currículo decorridas no século XX. 
Tomaz Tadeu da Silva é reconhecido na América Latina como um dos maiores estudiosos do currículo no Brasil com vasta contribuição para a práxis educativa.
Documentos de Identidade é um importante trabalho para aqueles profissionais da educação que organizam os currículos escolares, mormente, nessa década de reformas na educação do Brasil, quando parâmetros curriculares foram apresentados às escolas brasileiras.

A título de observação como reflexão para a leitura da presente obra, os PCNs partem de um conjunto básico de valores universais considerados indispensáveis à manutenção de sociedades democráticas, como o cultivo à tolerância e o respeito a diferenças. Em suma, os PCNs tendem a direcionar as necessidades da escola à tarefa de transmitir valores que balizam os comportamentos de indivíduos e grupos na medida em que possibilitam a construção de identidades no contexto da nova ordem mundial. 

Como o “currículo é sempre o resultado de uma seleção” (p.15) e essa seleção é o resultado de um processo que reflete os interesses particulares das classes e grupos dominantes, faz-se necessária uma reflexão radical (no sentido de ir até a raiz do problema), na implementação dos parâmetros curriculares.Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo traz uma contribuição para essa reflexão.

Outro aspecto a ser ressaltado, que não deixa de ter relação com o que foi tratado acima, é o fato de o livro trazer à luz o debate, de final de século, sobre o caráter da modernidade desenvolvido pelo capitalismo. 
Esta é, talvez, com o risco de ser por demais concisa, a maior contribuição deste livro: a discussão de qual conhecimento da sociedade (e relações de poder) o currículo desenvolve por meio da educação, no contexto da pós-modernidade. A explicação dessa sentença será dada no decorrer do texto.

O autor traça uma genealogia do currículo enfocando, principalmente, os estudos realizados nos EUA e na Inglaterra. A perspectiva adotada tem a noção de discurso como premissa para pensar as teorias do currículo. Isso significa uma posição crítica em frente à idéia de teoria que, ao pretender “descobrir” o real, na verdade, somente representa uma imagem; um reflexo de uma realidade que, cronologicamente e ontologicamente, a precede. Nessa perspectiva, ao descrever um determinado objeto, a teoria está inventando-o. O pós-estruturalismo é a fonte que origina essa linha de pensamento, que enfoca o discurso produzindo seu próprio objeto: “[...] a existência do objeto é inseparável da trama lingüística que supostamente o descreve” (p.12). Portanto, um discurso sobre o currículo é a produção de uma visão particular de currículo.

Nesse sentido, para ser coerente com a própria perspectiva adotada no livro, o autor apresenta sua visão sobre as diferentes teorias do currículo, enfocando, na maior parte do trabalho, as teorias críticas para chegar à apresentação das teorias pós-críticas. Por meio de um diagrama, Silva utiliza-se da classificação das teorias em tradicionais, críticas e pós-críticas, relacionando também os respectivos conceitos que caracterizam cada uma. O autor defende que o exame dos diversos conceitos, empregados pelas teorias, organiza e estrutura a forma de olhar a “realidade”, demonstrando aí uma tendência à sistematização.
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Como é mostrado pelo autor, é a questão do poder o centro da reflexão das teorias críticas e pós-críticas do currículo. Dessa forma, os questionamentos feitos ao currículo não se limitam a perguntar “o quê?”, mas “por quê?” Pois, para Tomaz Tadeu, a discussão sobre currículo vai além de uma seleção de conhecimento, envolve sim, uma operação de poder. Assim, o currículo é um documento de identidade. “As teorias críticas e pós-críticas de currículo estão preocupadas com as conexões entre saber, identidade e poder” (p.16).

Priorizando uma análise genealógica, para identificar como o currículo vem sendo definido em diferentes momentos, Silva analisa os trabalhos dos norte-americanos, nos anos 1920, que iniciaram os estudos sobre currículo, muito provavelmente influenciados pela institucionalização da educação de massas. 

Em 1918, Bobbitt escreve The curriculum, marco no estabelecimento do currículo como campo especializado de estudos.
Sua proposta tem a escola funcionando eficientemente como uma empresa econômica, nos princípios propostos por Federick Taylor. 
Contemporâneo de Bobbitt e com diferente perspectiva teórica, John Dewey, em livro escrito em 1902, está mais preocupado com a construção da democracia que com o funcionamento da economia. 
Mas foi com Ralph Tyler, em livro publicado em 1949, quando o modelo industrial na educação de Bobbitt é consolidado, dominando o campo do currículo nos EUA, influenciando outros países, inclusive até hoje no Brasil. 
O currículo, nessa perspectiva, é essencialmente uma questão técnica, cujo paradigma está centrado na sua organização e desenvolvimento.

Com a preocupação, não é demais repetir, de traçar as ramificações da construção teórica crítica do currículo, Silva revisa referências importantes do pensamento educacional, como Althusser, Bowles e Gintis, Bourdieu e Passeron que deixaram seu legado e modificaram radicalmente a teoria curricular pós-década de 1960. 
A partir da teoria marxista, tais autores, com ênfases diversas, investigaram a estreita relação entre a educação e a produção e disseminação da ideologia, apontando a escola como um espaço de reprodução da sociedade capitalista.

Na década de 1970, nos EUA, surge o movimento de reconceptualização do currículo como expressão da insatisfação constante de estudiosos do campo do currículo com os parâmetros tecnocráticos estabelecidos pelos modelos de Bobbitt e Tyler. Tal movimento partiu das concepções fenomenológicas, hermenêuticas e autobiográficas. Inicia-se o período da crítica neomarxista às teorias tradicionais do currículo e de seu papel ideológico.

No livro, são destacados dois estudiosos norte-americanos reconhecidos no campo do currículo: Michael Apple e Henry Giroux. 
Michael Apple começa seu trabalho a partir da discussão dos elementos centrais da crítica marxista da sociedade, destacando a conexão entre a organização da economia e do currículo. Mas, para Apple, essa não é uma relação mecânica; o campo cultural não é um simples reflexo da economia: ele tem a sua própria dinâmica. Silva analisa especialmente o primeiro trabalho de Apple (1979), Ideologia e currículo, que está em consonância com o paradigma marxista, mas não deixa de referenciar outros trabalhos posteriores a esse, nos quais Apple aborda as relações de gênero e raça no processo de reprodução social exercido pelo currículo, não deixando de manter em todas as suas obras a preocupação com o poder.

Henry Giroux ajudou a desenvolver uma teorização crítica sobre o currículo. 
Silva novamente se limita a analisar somente os trabalhos da primeira fase do autor. Inspirado pela Escola de Frankfurt, com sua ênfase na dinâmica cultural e na crítica na razão iluminista e na racionalidade técnica, para Giroux, o currículo é um local onde se produzem e se criam significados sociais, estando em jogo uma política cultural.

No livro também são destacados os primeiros trabalhos de Paulo Freire, pois influenciou muitos autores mais diretamente ligados aos estudos curriculares, apesar de não ter desenvolvido uma teorização específica sobre o currículo. Freire é classificado no livro como fenomenológico e precursor de uma perspectiva pós-colonialista sobre currículo. Além da análise da perspectiva freiriana, Silva coloca Saviani em oposição àquele autor numa tentativa extremamente rápida de análise do pensamento de Saviani.
Tomaz Tadeu destaca a separação feita por Saviani entre educação e política, colocando-o como um dos únicos pensadores críticos a esquecer a conexão entre conhecimento e poder, cuja relação é central para os teóricos críticos do currículo que têm, na seleção do conhecimento, uma operação de poder. Na verdade, pode-se afirmar que a questão de fundo do livro é a crítica às reivindicações educacionais progressistas, cuja tese estava centrada na apropriação, pelas classes populares, do currículo hegemônico como condição de igualdade. Silva destaca que a “[...] obtenção da igualdade depende de uma modificação substancial do currículo existente” (p.90). Esse é o salto proposto pelas teorias pós-críticas do currículo.

Na Inglaterra, a crítica ao currículo é feita a partir da referencia da “antiga” Sociologia da Educação. No início da década de 1970, surge a Nova Sociologia da Educação, cujo líder é Michael Young. Sua proposta é delinear as bases de uma sociologia do currículo, com o objetivo de destacar o “[...] caráter socialmente construído das formas de consciência e de conhecimento, bem como suas estreitas relações com estruturas sociais, institucionais e econômicas” (p.66). Dessa forma, “[...] uma perspectiva curricular inspirada pelo programa da NSE buscaria construir um currículo que refletisse as tradições culturais e epistemológicas dos grupos subordinados e não apenas dos grupos dominantes” (p.69). Silva dá uma especial relevância ao trabalho de Basil Bernstein desenvolvido na Inglaterra, na década de 1970. Sua preocupação é saber como o currículo está estruturalmente organizado e ligado a princípios diferentes de poder e controle.

No quadro das teorias pós-críticas, o multiculturalismo – origem nos países dominantes do norte – é um movimento de reivindicação dos grupos culturais dominados no interior daqueles países para terem suas formas culturais reconhecidas e representadas na cultura nacional. Silva afirma haver uma continuidade entre a perspectiva multiculturalista e a tradição crítica do currículo. A tradição crítica inicial chamou a atenção para as determinações de classe do currículo. O multiculturalismo apresenta outro foco de origem da desigualdade em matéria de educação e currículo, pautado nas questões de gênero, raça e sexualidade. Tais questões podem ser vistas também como uma solução para os “problemas” que a presença de grupos raciais e étnicos coloca, no interior daqueles países, para a cultura nacional dominante.

Nas teorias pós-críticas, passa a ser importante não somente identificar os conflitos de classe presentes no currículo, como feito pelas teorias críticas, mas acima de tudo descrever e explicar as complexas inter-relações das dinâmicas de hierarquização social. As teorias críticas se concentraram, inicialmente, em questões de acesso à educação e ao currículo das crianças e jovens pertencentes a grupos étnicos e raciais considerados minoritários. Somente em uma segunda fase, por meio dos estudos culturais e pós-estruturalistas, o próprio currículo passou a ser problematizado como sendo racialmente enviesado. “A questão da raça e da etnia não é simplesmente um ‘tema transversal’: ela é uma questão central de conhecimento, poder e identidade” (p.102).

A teoria queer, analisada no livro, pode ser colocada como exemplo de uma pedagogia que objetiva estimular o debate sério sobre a questão da sexualidade, a ser tratada no currículo como uma questão legítima de conhecimento e de identidade. Outro exemplo do livro trata-se da teoria pós-colonialista. Seu objetivo é analisar “[...] o complexo das relações entre as diferentes nações que compõem a herança econômica, política e cultural da conquista européia tal como se configura no presente momento [...]” (p.125). Diferentemente das outras análises pós, a teoria pós-colonial centra-se nas relações de poder entre nações. Uma perspectiva pós-colonial exige um currículo multicultural que não separe questões de conhecimento, cultura e estética de questões de poder, política e interpretação. Ela reivindica um currículo descolonizado.

A discussão empreendida por Silva sobre as teorias curriculares está assentada no contexto da pós-modernidade que, por sua vez, se encontra o movimento pós-estruturalista. O pós-estruturalismo estende consideravelmente o alcance do conceito de diferença a ponto de parecer que não existe nada que não seja diferente. Não se pode falar propriamente de uma teoria pós-estruturalista do currículo, mesmo porque o pós-estruturalismo, tal como o pós-modernismo, rejeita qualquer tipo de sistematização. Mas há certamente uma atitude pós-estruturalista em muitas das perspectivas atuais sobre currículo. A atitude pós-estruturalista enfatiza a indeterminação e a incerteza também em questões de conhecimento. O significado não é preexistente: ele é cultural e socialmente produzido. O importante então é examinar as relações de poder envolvidas na sua produção. A questão não é saber se algo é verdadeiro, mas, sim, saber por que esse algo se tornou verdadeiro.

Para concluir, Silva volta-se para as teorias pós-críticas, não deixando de destacar a grande contribuição das teorias críticas. Estas não devem ser vistas simplesmente como uma superação, mas mutuamente inclusivas para a compreensão dos processos pelos quais, através de relações de poder e controle, nos tornamos mulheres e homens. Nas teorias pós-críticas, o poder não tem mais um único centro, está espalhado por toda a rede social; o poder transforma-se, mas não desaparece.

Essa assertiva, certamente, traduz uma das mais úteis conquistas dos estudos do currículo, mas precisa ser vista como uma passagem de um estágio mais civilizado e menos mecânico; um saber mais substantivo e não somente ligado a um ritmo de variações, mas um campo de amplas possibilidades de transformação do convívio social.

Acerca do autor do livro


Tomaz Tadeu da Silva é doutor em educação pela Universidade de Stanford, Estados Unidos. Atualmente é professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É coordenador, juntamente com a Professora Sandra Corazza, de um grupo de estudo denominado DIF - Grupo de Currículo de Porto Alegre. Autor de vários livros na área de Currículo. Entre os mais recentes:Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais (Vozes);Pedagogia dos monstrosDocumentos de IdentidadeO currículo como fetiche (Autêntica).

Acerca da autora do resenha


Eliza Bartolozzi Ferreira, Historiadora, mestre em Educação na área de concentração de Estado e Políticas Públicas. Professora de Ensino Superior (Faesa-ES) com as disciplinas Política Educacional e Sociologia do Currículo. Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais na linha de pesquisa em Políticas Públicas e Educação: formulação, implementação e avaliação, cuja orientadora é a Professora-doutora Dalila Andrade Oliveira. Autora de vários artigos publicados em periódicos e livros na área de Política Educacional, entre eles: "A educação profissional no Brasil: um projeto de inclusão precarizada (2001)" e "A política educacional brasileira no tempo da qualidade: uma estratégia liberal-conservadora (1999)".

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