Ensino Técnico

Presidenciáveis, ideologia e ensino técnico

28/06/2010
Não conheço nenhum aluno que saiu de uma escola técnica de nível médio que, se a duras penas chegou à universidade, fez elogio ao ensino que obteve antes do nível superior. Seja lá de qual escola veio, o aluno do ensino técnico, nesses últimos 20 anos em que acompanho suas trajetórias na universidade, reclama mais que os outros – e não sem razão – pela sua dificuldade no ensino superior. A despeito disso, os três candidatos à presidência que aparecem com intenção de voto nas pesquisas querem priorizar o ensino técnico.

Nesse aspecto, os três falam sem conhecimento de causa. Marina quer ensino técnico com o currículo “voltado para o verde”. Dilma quer continuar a ampliação do “ensino técnico de Lula”. Serra diz que irá ampliar o ensino técnico e, como não poderia deixar de ser para seu perfil ideológico, sustentará essa ampliação com dinheiro público destinado às escolas técnicas particulares – vingará aí o velho sistema de bolsas. Isso, aliás, não o faz diferente de Lula que, enfim, pela via de Fernando Haddad, recheou os bolsos dos empresários com o Prouni.

Claro que a objeção que fazemos ao ensino técnico, uma vez colocada diante dos candidatos, não ficaria sem resposta – e rápida. Com a fala fácil que os três possuem, principalmente na disputa de votos, eles diriam que fariam um ensino técnico superior ao existente hoje. Falariam, sem rubor, que construiriam um sistema de ensino técnico tanto profissionalizante quanto propedêutico à universidade. No momento em que escrevo, até posso imaginar a expressão do rosto de cada um respondendo a tal objeção, fazendo ar sério para dar a impressão que chegaram a refletir sobre o assunto. Mas não refletiram nada. E nenhum dos três sabe ao certo o que estão falando.

O ensino técnico no Brasil tem uma tradição de cultivar a terminalidade. Ele nasceu entre o Império e a República não para favorecer o desenvolvimento do país, mas para encontrar um lugar para o pobre. Hoje, o ensino técnico ainda aparece segundo o espírito de quando a Era Vargas o instituiu de modo mais amplo, a partir da década de quarenta. O que foi criado pela Era Vargas, por obra do ministro da Educação Gustavo Capanema, espelhou o Estado Corporativo. Todo o ensino era feito em canais pouco comunicáveis horizontalmente, de modo que a população estudantil já se configurasse dentro de uma corporação antes mesmo do término de seus estudos. O ensino produziria as corporações, sendo que algumas, formadas por gente mais pobre, se constituiriam de modo mais rápido. Depois, nos anos sessenta, quando o ensino ficou livre de vez das amarras horizontais da legislação, que proibiam que o ensino técnico habilitasse para o ensino superior de um modo geral, o reflexo disso, ou seja, tudo que se seguiu daí em diante, não criou nenhuma boa tradição. Tanto é que, quando em 1971 a Ditadura Militar tornou todo o ensino médio em ensino técnico-profissionalizante, isso só serviu para inviabilizar a escola média e desacreditar de vez o ensino técnico perante as classes médias e, até mesmo, perante as classes populares. Em 1978, o próprio governo federal, ainda no ciclo dos governos militares de 1964, reconheceu o erro e eliminou a obrigação da escola média de se manter filiada à proposta técnico-profissional.

A inviabilização desse projeto da Ditadura Militar deixou para vários entre nós uma experiência: que a insistência nesse tipo de educação não era algo a ser feito novamente. Para além dos problemas pedagógicos, que realmente mostraram os erros dessa insistência, um dos elementos mais fortes para sua inviabilização foi a rejeição do modelo pela própria população a quem ele foi destinado.

A população brasileira, especialmente os setores popualres, não queria a escola profissionalizante de nível médio. Aliás, quando da hora da matrícula e não na hora da eleição, ela ainda rejeita o ensino técnico-profissionalizante. A profissionalização no ensino médio que sempre foi aceita pela população brasileira, para além da fornecida pelo do Senai e Senac, era a da formação da professora pela Escola Normal, uma escola estadual, e a da formação de contabilista, em geral feita por escolas municipais. Essas escolas davam terminalidade ao terceiro ou quarto anos. Fora disso, a população brasileira sempre preferiu o ensino médio como uma educação propedêutica à universidade. O filho do pobre sempre sonhou com a profissionalização na universidade e, se assim não acontecia por obra da barreira do vestibular, jamais quis fixar sua dedicação em uma escola técnica profissional. Afinal, ele sempre soube que, para uma profissionalização naquele nível, as próprias empresas dariam treinamento técnico-profissional – sem dúvida melhor do que faria uma escola de rede pública ou privada.

Esse pensamento ainda não mudou. Todavia, a idéia de que o ensino técnico é uma boa opção, é ideologicamente criado e recriado entre as elites, inclusive as elites sindicais, e, por isso mesmo, elas sempre gastam saliva nesse tópico. Elas vendem um peixe que só é assado pela sociedade porque essas elites fizeram propaganda (enganosa) do tal peixe. Mas, quem já comeu bons peixes, sabe que este está contaminado pelo agro-tóxico da hegemonia do pensamento conservador.

O ensino médio não tem como ser bom, técnico e popular tudo ao mesmo tempo. Expandir o ensino técnico médio de modo real, mantendo-o como um ensino que realmente profissionaliza e que não castra aqueles que, porventura, queiram depois seguir para a universidade, não é algo viável. Todos sabem disso. Ficaria muito caro uma rede de escolas técnicas de boa qualidade para além das redes que já temos. Criar estabelecimentos e fazer deles escolas que gerariam jovens mais informados sobre o mundo e, portanto, capazes de lidar com saberes para além das questões técnico-profissionalizantes, é um projeto muito dispendioso se comparado com a expansão de uma boa rede pública de ensino propedêutico.

Assim, conta contra o projeto dos três candidatos, dois fortes elementos: a não preferência da população, na hora da matrícula, pela escola técnica; a falta de dinheiro para tal, uma vez que é um projeto realmente caro, algo que, se possível, nunca sairia do âmbito dos tais “projetos experimentais”.
Por que esses candidatos, então, mantêm essa plataforma? Só ignorância? Não, o que há é a força da ideologia. Essa ideologia de que o melhor para os setores populares é conseguir uma formação mais rápida, ligada de modo muito direto ao mundo do trabalho, é o aspecto mais forte (e talvez um dos mais perversos) do corpo de pensamentos das elites brasileiras desde o século XIX. A idéia básica é simplesmente o seguinte: filhos de trabalhadores não foram feitos para estudar e, sim, para trabalhar; então, se vão estudar, que estudem num lugar que já os coloque logo no mundo do trabalho. Esse é um pensamento pouco generoso, de caráter conservador. Nossos três candidatos são, em termos gerais, conservadores. Sabemos disso. E isso aparece de modo mais nítido nas suas propostas de educação.

Os candidatos poderiam, para ganhar votos, mentir em outra direção. Poderiam dizer que dariam uma escola básica e boa qualidade para todos, que todos teriam chances para o ensino superior. Mas eles preferem mentir e, ao mesmo tempo, propagar sua ideologia. A ideologia é, por definição, o que esconde algo, mas, ao mesmo tempo, o mostra. A população é convidada a se enganar: fica com a idéia de que, como é provável que nunca terá acesso ao ensino superior e que estudar é, realmente, algo feito para os filhos dos ricos ou para os filhos dos que já estudaram, então, é melhor sonhar com o possível: a escola técnica que dará profissão rapidamente. Esse sonho pequeno termina na hora da matrícula. Nessa hora, todos vão para a escola existente, pública, gratuita e, em geral, a escola que se mantém como aquela para o qual o fluxo da vida corre. Mas o sonho maior ressurge. Afinal, aos 13 anos, contra a lei, um jovem pode ser posto no trabalho e não reclamar, mas, a favor da lei, ele não gosta de ser posto numa escola do trabalho. Ele sonha com o ensino superior como o único e tardio campo de profissionalização legitimo. Ele esquece, aí, o voto conservador de seus pais para os candidatos que falaram que viabilizariam o ensino técnico. Aliás, diga-se de passagem, esses candidatos não vão viabilizar nenhuma coisa realmente útil, em termos de educação, para o Brasil.

©2010 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ

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