Introdução
A legislação de Língua Brasileira de Sinais – Libras se embasa na Constituição Federal e também na isonomia que consiste em prover a igualdade de direitos a todos, tratando igual os iguais e desigual os desiguais na justa medida de suas diferenças. Oferecendo, dessa forma, dignidade ao ser humano, princípio este que fundamenta a República Federativa do Brasil. Em se tratando do Surdo só é possível no momento em que a Libras for inserida nos âmbitos sociais diminuindo as divergências entre seus semelhantes.
Diante de tudo que está garantido pela legislação vigente no que tange à Educação Inclusiva, vê-se o fosso entre o real e o ideal. Perplexos com as mutações infindáveis num contexto altamente competitivo e globalizado, os cidadãos, muitas vezes, encontram-se entregues à força dos apelos midiáticos ou das manipulações disfarçadas. Se pensarmos apenas nas pessoas ditas “normais”, a situação já é no mínimo assustadora. Tal quadro se intensifica ao analisarmos a situação de portadores de deficiência auditiva.
O professor não capacitado encontra significativas barreiras na comunicação com o aluno surdo, assim a atuação do intérprete é de extrema importância para junto com o professor propiciar a construção do conhecimento que leve o aluno ao pleno exercício de sua cidadania. O despreparo de profissionais agrava-se diante de uma inclusão feita com pouco ou nenhum apoio especializado, salas de aula superlotadas e a supervalorização da escrita e da norma culta da Língua Portuguesa, área na qual os surdos tem maior desvantagens na aprendizagem.
Tendo a escola, principalmente a pública, o papel de formar para a cidadania, cabe ater-se ao verdadeiro papel do intérprete, uma vez que o educador de escola regular não se encontra preparado para atender os educandos surdos. Se o aluno surdo não mantém uma comunicação eficiente, em sala de aula e na sociedade, e o homem como ser histórico-cultural é também formado pela linguagem, a essência do processo educativo ficaria assim, comprometida.
O trabalho do intérprete ultrapassa a mera decodificação dos conteúdos ministrados e/ou situações de interação, ele é o elo de sedimentação na construção da cultura “toda atividade de interpretação presente no cotidiano da linguagem fundamenta-se na suposição de que quem fala tem certas intenções, ao comunicar-se (KOCH, 2008)”.
Compreender uma enunciação é, nesse sentido, apreender essas intenções. A noção de intenção não tem, aqui, nenhuma realidade psicológica: ela é puramente lingüística, determinada pelo sentido do enunciado, portanto linguísticamente constituída. Ela se deixa representar de uma certa forma no enunciado, por meio do qual se estabelece entre os interlocutores um jogo de representações, que pode corresponder ou não a uma realidade psicológica ou social (op. cit.).
Diante da prescrição da neutralidade na atuação do intérprete de Libras na sala de aula, há a necessidade de investigar se existe tal neutralidade, e se existir em que situações ela é adequada e em que intensidade?
O presente trabalho se justifica uma vez que, para que haja uma verdadeira inclusão faz-se necessário que sejam estudados e investigados, na medida de sua viabilização, os profissionais e mecanismos que corroboram para a implementação de uma sociedade inclusiva. No caso do intérprete de Libras investigar a “neutralidade” buscando verificar se a atual postura exigida do intérprete de Libras proporciona resultados que vão ao encontro da base da prática inclusiva: a autonomia.
Tendo em vista que inúmeros estudiosos da linguagem demonstram e analisam as forças que agem no sujeito e sobre ele, e que influenciam diretamente na linguagem, no discurso e na interpretação. Conceber quais forças agem sobre o intérprete, sua atuação é importante para a busca de uma atuação crítica e consciente.
O Intérprete
O profissional intérprete de língua de sinais surge à medida que os surdos organizam-se para garantir seu direito rumo ao pleno exercício da cidadania. Quando os surdos começam a se reunir para participar do rito religioso, surge a necessidade do intérprete nas igrejas e deste contato e maior comunicação entre o povo surdo se originaria as primeiras organizações sociais destes. Nesse período o trabalho do intérprete ficava a cargo de atividades voluntárias. Em alguns países a atuação do intérprete de língua de sinais já acontecia no século XIX. No Brasil iniciou-se no século XX a partir dos anos 80 em instituições religiosas.
A profissionalização do intérprete de língua de sinais está diretamente ligada com a organização das comunidades surdas e o reconhecimento da língua de sinais, pelo governo do país, como língua. O que acarretaria no reconhecimento da diversidade linguística do povo surdo e na garantia da acessibilidade à educação e informação ao surdo por meio do intérprete. Tal reconhecimento, no Brasil, efetuou-se no dia 24 de abril de 2002 pela lei 10.436 que dispõe sobre a Libras – Língua Brasileira de Sinais e da outras providências.
Há, com o intuito de orientar a atuação do intérprete uma publicação intitulada O tradutor e intérprete de Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa (MEC/SEESP, 2002), do Programa Nacional de Apoio à Educação de Surdos, e nele um Código de Ética, parte do Regimento Interno do Departamento Nacional de Intérpretes da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis) adaptado do modelo de Washington, EUA (RID, 1965). Nele descrito os deveres e direitos do intérprete bem como sua postura.
Entendo, sobremaneira, a necessidade de um modelo de atuação do intérprete. E que em alguns itens aos quais o documento refere-se são verossímeis para o bom trabalho deste profissional. Todavia, em algumas situações o código foge de nossa realidade. No parágrafo 6º (O intérprete deve ser remunerado por serviços prestados e se dispor a providenciar serviços de interpretação, em situações onde fundos não são possíveis;) afirma que o este deve se dispor a providenciar seus serviços onde não houver fundos para sua remuneração. Se ele é um profissional deve ser remunerado pelo seu serviço, podendo exercer, se desejar, serviço voluntário. Mas isso não deveria ser uma obrigação. Afinal não vemos médicos, engenheiros trabalhando para clientes que não lhes podem pagar.
No parágrafo 13º (Reconhecendo a necessidade para o seu desenvolvimento profissional, o intérprete deve agrupar-se com colegas profissionais com o propósito de dividir novos conhecimentos de vida e desenvolver suas capacidades expressivas e receptivas em interpretação e tradução.) diz que o intérprete deve dividir seus conhecimentos com os colegas, o que é louvável. Mas, e quando o colega também for um concorrente, numa sociedade competitiva como a nossa? Não é essa a relação que vemos nas estruturas profissionais, inclusive na área de língua de sinais, os instrutores não ensinam os ouvintes, intérpretes ou não, de graça.
Tal documento, em outros parágrafos tenta tolher direitos assegurados ao cidadão. Se confrontarmos o 8º parágrafo (O intérprete jamais deve encorajar pessoas surdas a buscarem decisões legais ou outras em seu favor;) com o 12º (O intérprete deve esforçar-se para reconhecer os vários tipos de assistência ao surdo e fazer o melhor para atender as suas necessidades particulares.). O que seria fazer o melhor? E se para esse melhor fosse preciso uma intervenção legal? Cumpre-se um e descumpre o outro? O cidadão tem o direito de se organizar, e cobrar legalmente seus direitos, isso é constitucional. Dessa forma, se tomarmos este Código de Ética no que toca a “neutralidade” da atuação do intérprete, teremos outras questões, uma vez que o ser humano é moldado por seu meio cultural e dele sofre influências. E sabendo que todo sujeito é ideológico por trás de todo texto há crenças, valores, ideologias e interesses.
Além disso, hoje entendemos que o surdo participa de uma cultura na qual poucos ouvintes estão inseridos, a cultura surda; assim este tem formas de compreender o mundo e se relacionar com ele bem diferentes dos ouvintes. No universo escolar, isso se acentua, em relação às diferenças lexicais entre a língua portuguesa e a língua de sinais, os professores desconhecem-nas e isso impossibilita e ou dificulta a avaliação do aluno surdo em atividades escritas. Nessas situações onde o retorno, resposta em português gramaticalmente correto, não é o alcançado, somado ao desconhecimento das especificidades do educando surdo, o professor entende que o aluno também tem problemas de ordem cognitiva, confirmando o senso comum que é atribuído ao surdo. Mais uma vez, fica evidente a intervenção e o olhar do intérprete que também participa do processo educativo.
A Interpretação
Na atuação do intérprete quanto à língua portuguesa é preciso que este faça intervenções que favoreçam o aluno, uma vez que tratamos do intérprete escolar e o objetivo é proporcionar a construção do conhecimento do educando. Como por exemplo, em uma aula de Português, o sentido conotativo para o surdo é muito complicado, pois quando se faz a tradução literal ele não atribui sentido (com o foco da tradução nas palavras), como acontece com as classes populares no ambiente escolar que privilegia a visão elitista de língua. Por outro lado, quando o intérprete faz a tradução com o objetivo de informar o conteúdo (com o foco da interpretação na mensagem) que foi dito e não pode intervir neste processo fazendo paralelos entre o português e a Libras o aluno perde, afinal teve a informação contextualizada, todavia não teve a oportunidade de perceber a diferença da língua portuguesa para a Libras. Entendo como indispensável tal intervenção, proporcionando a informação e conseqüentemente um maior contato com a língua portuguesa que auxiliara na leitura de texto e em sua produção. O aluno deve ser preparado para atuar com a maior autonomia possível na sociedade uma vez que o intérprete está presente apenas na sala de aula.
O sentido, portanto, não se apresenta como algo preexistente à decodificação, mas sim, como constituído por ela.[...] O valor semântico de uma frase – a sua significação – não é objeto de qualquer comunicação possível, pois ele consiste num conjunto de instruções para a sua interpretação, que comporta uma série de vazios a serem preenchidos por indicações que apenas a situação de discurso pode fornecer(KOCH, 2008).
Para agravar tal quadro, na comunicação que não se baseia na língua portuguesa nem na língua de sinais, ao tentar compreender as expressões faciais, por exemplo, os olhares dos educandos surdos os quais não são os mesmos dos ouvintes, o professor pode fazer interpretações errôneas. Com o aluno ouvinte, o professor (ouvinte) pode explicar novamente a matéria, fazer reiterações e adendos só por perceber nos olhares, e expressões fisionômicas quando não entenderam e com o surdo isso não é possível. Em momentos como estes é indispensável que o intérprete comunique ao professor, obviamente de forma discreta e sem atrapalhar o andamento e sem demonstrar questionamento frente a sua autoridade, intervindo assim que uma dúvida seja levada adiante e atrapalhe futuramente o processo de aprendizagem.
Diante de tão profundas diferenças linguíticas, cognitivas, sócio-culturais não é possível estabelecer relações exatas, estritas entre signos e significados de uma ou outra língua (Português-Libras) tanto na tradução e interpretação como no ensino. “ Quando se veicula um conteúdo por meio de distintos planos de expressão, esse conteúdo sofre alterações( FIORIN ,2008)”.
Conhecendo um pouco a postura e reações das minorias sejam étnicas, sociais, lingüísticas e tomando também como base situações vivenciadas por todos nós nas quais somos, mesmo que por um momento, minorias, sabemos que por via de regra, minorias e pessoas em situações desfavoráveis tendem a omitir-se. Principalmente nas relações de aprendizagem ninguém quer deixar em evidência que não sabe.
Considerações Finais
Diante de tais considerações verifica-se ser de suma importância uma reestruturação das perspectivas que vêm orientando o trabalho do intérprete educacional, buscando uma proposta que se adeque à nossa realidade, na qual o intérprete também seja um educador e aja ativamente em harmonia com o professor para galgar um maior desenvolvimento de seus alunos. Conseqüentemente para tal postura o profissional intérprete deve ter formação acadêmica na área educacional. Assim como os cursos de formação para estes profissionais devem oferecer uma estrutura curricular e metodológica organizada a fim de suprir a carência, no que tange às teorias da educação, bem como proporcionar uma atualização de profissionais que possam já possuir formação profissional na área da educação.
Então uma análise crítica do poder ideológico por detrás das políticas e propostas educacionais, em especial na educação de surdos, permitirá romper com a configuração espontânea, fragmentária e acrítica que se instalou na práxis educacional e que vem mantendo e reproduzindo os interesses do segmento dominante da sociedade.
Referências:
FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 14. Ed., 1ª reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2008.
KOCH, Ingedore Grunfeld Vilaça. Argumentação e linguagem. 11. Ed. – São Paulo : Cortez, 2008.
MEC/SEESP. O tradutor e intérprete de Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa. Secretaria de Educação Especial; Programa Nacional de Apoio à Educação de Surdos – Brasília: MEC; SEESP, 2002.
HUGO COELHO DE OLIVEIRA
E-mail: hugoliveira23@yahoo.com.br
Fonte -
http://editora-arara-azul.com.br/novoeaa/revista/?p=177
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