Tatiana Savoia Landini (i)
Norbert Elias é conhecido principalmente por seu livro O Processo Civilizador (2000), publicado pela primeira vez na Suíça em 1939 (ii). Nessa, que é reconhecida como sua obra magna, Elias propõe o seguinte problema, a princípio bastante simples: se uma pessoa que vive em nossa época fosse transportada até tempos passados em sua própria sociedade, certamente veria um modo de vida muito diferente do seu, alguns costumes provavelmente lhe causariam asco, enquanto outros lhe causariam curiosidade e até atração – em suma, encontraria muito daquilo que vê em sociedades atuais às quais considera incivilizadas. Apesar de o problema ser bastante simples, as perguntas correspondentes a essa situação – como se deu essa mudança? em que consiste? quais são suas forças motrizes? – não comportam uma resposta rudimentar. São essas perguntas que O Processo Civilizador procura responder.
O livro está dividido em 4 partes. Na primeira, Elias examina os diferentes significados da palavra civilização, na Alemanha e na França, ou seja, os significados atribuídos por cada uma dessas culturas, sua definição êmica. Precursor do conceito de civilização, o conceito de civilidade, utilizado primeiramente na França do século XVI, mas também na Inglaterra, Itália e Alemanha, demarcava o comportamento da corte, explicitando as barreiras sociais entre esse grupo e o restante da sociedade (Fletcher, 1997: 7). Na Europa do século XIX, o conceito de civilização possuía dois significados: em primeiro lugar, era o conceito utilizado pela corte para opor-se ao barbarismo e, em segundo, transmitia a idéia de um processo com um objetivo, envolvendo o refinamento do comportamento social e a pacificação interna do país (Fletcher, 1997: 9). Nas palavras de Elias, o conceito de civilização
“expressa a autoconsciência do Ocidente. Poderíamos inclusive afirmar: a consciência nacional. Ele resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas ‘mais primitivas’. Com esse termo, a sociedade ocidental procura descrever em que constitui seu caráter especial e tudo aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras (costumes), o desenvolvimento de seu conhecimento científico ou visão de mundo, e muito mais” (Elias, 2000: 5).
Ao buscar a definição êmica, o autor questiona a crença no progresso e na ‘civilização’ européia; ou seja, em vez de aceitar essa convicção e incorporá-la em sua obra, percorre o caminho oposto, problematizando a própria definição. Dito de outra forma, busca entender o conceito de civilização – assim como o de civilidade e cortesia – relacionando-o ao desenvolvimento da sociedade na qual é utilizado. É importante enfatizar a questão da relação entre o conceito e o desenvolvimento da sociedade: seu objetivo não se esgota em traçar as mudanças do conceito; antes, procura entender as sociedades que lhe deram forma, o que será feito nas partes seguintes da obra.
A segunda parte do livro busca mostrar transformações nos costumes, abarcando mudanças nas maneiras associadas à mesa, à forma de comer, atitudes em relação às funções corporais, comportamento no quarto de dormir, etc. Partindo de fontes de dados diversas, tais como literatura, pinturas, documentos históricos mas, principalmente, livros de boas maneiras, Elias novamente inicia a reflexão a partir da definição, ou seja, da forma como pessoas de diversas épocas entendiam um determinado comportamento, para dali chegar ao comportamento propriamente dito. A fim de compreender o que veio a ser considerado ‘civilizado’, volta aos conceitos anteriores, courtoisie e civilité (civilidade). A questão que se propõe a responder é como e por que a sociedade ocidental passou de um padrão para o outro, do padrão de civilidade para o de civilização (Elias, 2000: 51).
A partir da análise dos diversos tópicos levantados, ele mostra que as mudanças nos costumes não ocorrem aleatoriamente, mas seguem uma direção: um aumento no sentimento de vergonha e repugnância, em concomitância com uma maior tendência a esconder, nos bastidores da vida social, aquilo que as causa. O que o autor aponta, a partir de exemplos corriqueiros ou cotidianos, é a relação existente entre a dinâmica psicológica (o sentimento de vergonha e repugnância) e a dinâmica social (explicitada nas noções de refinamento e civilização), ou, de forma a enfatizar um dos conceitos mais importantes desenvolvidos por ele, a relação entre a dinâmica social e a estrutura da personalidade. O termo habitus, normalmente associado a Bourdieu, é também utilizado por ele referindo-se tanto ao habitus individual quanto ao social – o último constituindo o terreno no qual crescem as características pessoais e significando basicamente “segunda natureza” ou “saber social incorporado” (Dunning e Mennell, 1997: 9).
A relação entre sociogênese e psicogênese, muitas vezes incompreendida em função das próprias palavras escolhidas pelo autor, pode ser simplificada:
“As citações retiradas dos livros de boas maneiras mostram a direção do desenvolvimento das sociedades ocidentais ao longo de vários séculos, o que lembra de forma bastante exata o desenvolvimento visto em cada criança individualmente à medida que passa pelo processo de ‘crescer’. (...) Isso ocorre pois cada jovem pessoa está sujeita automaticamente, a partir da primeira infância, a um processo civilizador individual que molda seu comportamento – em maior ou menor medida, e com grau de sucesso maior ou menor – aos padrões prevalecentes que, por sua vez, se desenvolveram a partir de um processo civilizador social. Dessa forma, a psicogênese da personalidade de um adulto em nossa sociedade ‘civilizada’ não pode ser entendida aparte da sociogênese de nossa ‘civilização’” (Mennell, 1998: 50).
O conceito de segunda natureza, para Elias, não é de forma alguma essencialista. Muito pelo contrário, é utilizado pelo autor para superar os problemas da noção de “caráter nacional” como algo fixo e estático. O habitus muda com o tempo exatamente porque “as fortunas e experiências de uma nação (ou de seus agrupamentos constituintes) continuam mudando e acumulando-se” (Dunning e Mennell, 1997: 9).
Erasmus de Rotterdam é o autor escolhido para explicitar a sociogênese do conceito de civilidade. Em seu livro Sobre Civilidade nas Crianças (De civilitate murum pueilium), dedicado ao filho de um nobre, Erasmus discute as boas maneiras, retrabalhando o conceito de civilidade. O interesse de Elias é estabelecer que os preceitos contidos no trabalho de Erasmus são incorporações da estrutura mental e emocional da classe alta secular da Idade Média (iii) (Fletcher, 1997: 12). Os livros de boas maneiras não são, portanto, objetos de estudo em si mas, por meio deles, o autor busca obter informações sobre a estrutura mental e emocional da época.
O que está em jogo quando falamos na motivação da mudança (ou seja, por que há mudança) é que, em relação aos costumes, a transformação ocorre a partir da dinâmica das classes sociais. A fim de distanciar-se das outras classes sociais, a classe superior cria novos padrões de comportamentos, padrões esses que, com o passar do tempo, são adotados pelas outras classes. Dito dessa forma, fica muito parecido com o que veio a ser chamado por Bourdieu (Ortiz, 1994) de distinção. Entretanto, Elias toca em um ponto relevante, que o diferencia do autor francês: com o passar do tempo, os novos padrões de comportamento deixam de ser conscientes para tornarem-se uma segunda natureza – é a essa segunda natureza que se refere quando fala em mudanças na estrutura da personalidade.
À noção de mudanças na estrutura da personalidade adicionamos um outro ponto relevante a respeito da direção do processo da civilização: o auto-controle passa a ter um papel cada vez mais importante, em detrimento da necessidade de um controle externo. Nas palavras do próprio autor, ao longo do processo da civilização, ocorre uma mudança na balança entre controle externo e auto-controle, em favor do último.
Passamos agora à terceira parte do Processo Civilizador, Feudalização e a Formação do Estado. Não é possível deixar de lembrar a definição de Weber do Estado Moderno, aquele que tem o monopólio da violência legítima. A esse conceito, Elias adiciona a questão do monopólio da arrecadação dos impostos. Ainda mais importante, nessa longa análise, compreendendo um período anterior à Idade Média até os séculos XVI e XVII, mostra o processo de formação do Estado Moderno. No primeiro período, chamado de ‘primeira época feudal’, predominaram forças centrífugas, ou seja, a tendência era a desintegração dos reinos, formando pequenos territórios comandados por um poder central enfraquecido. Na época seguinte, a ‘segunda época feudal’, predominaram forças centrípetas, quer dizer, a tendência foi a aglomeração e a formação de unidades mais extensas, dominadas por um poder central cada vez mais forte.
O mais interessante, entretanto, é a relação entre a formação do Estado e as mudanças na estrutura da personalidade, quer dizer, a relação entre essa terceira parte do livro e a segunda, que trata dos costumes. O ponto de ligação pode ser encontrado no penúltimo capítulo da segunda parte (Sobre mudanças na agressividade) – é aqui que Elias nos mostra a conexão entre a estrutura social e a economia dos afetos. Em uma sociedade com o poder central fraco, não há nada que force as pessoas a se conterem. Por outro lado, se o poder central cresce e as pessoas são forçadas a viver em paz umas com as outras, a economia dos afetos também muda paulatinamente, passando a existir uma identificação maior entre elas, além de ataques físicos passarem a ser restritos àqueles que representam a autoridade central ou, em casos excepcionais, àqueles que lutam contra inimigos, internos ou externos, em épocas de guerra ou revolução (Elias, 2000: 169). Em outras palavras,
“reivindicando o monopólio da violência, o Estado monárquico impõe a repressão da violência privada e difusa, principalmente por meio das regras de manutenção da vida de corte, um modelo de autocoerção, de domínio das emoções, de ocultação do corpo e das funções orgânicas (inculcando o senso de pudor) que reestrutura a personalidade. Ele estimula o espírito de estratégia e de dissimulação para obter os favores do príncipe num dispositivo de poder em que a concorrência entre indivíduos é eufemizada, desmilitarizada e fixada sobre os recursos da astúcia e da previsão. Daí um desenvolvimento do cálculo racional e da introspecção para autodominar-se e adivinhar as intenções dos outros” (Burguière, 2001: 105).
Por fim, a quarta e última parte – Sinopse: por uma teoria do processo civilizador – é um apanhado geral dos principais conceitos trabalhados pelo autor ao longo da obra e de suas principais conclusões. Não se trata de um simples resumo teórico mas, de certa forma, é o resultado de seu empreendimento na pesquisa do processo civilizador. Para Elias, os conceitos sociológicos não devem, de forma alguma, ser meramente teóricos, mas constituem o resultado da pesquisa empírica. Ou seja, para ir a campo, ele não parte de conceitos pré-formulados, mas de algumas concepções mais gerais para, no processo de pesquisa e análise de seu material, chegar a conclusões tais quais as que estão expressas na Sinopse do livro.
Entretanto, mais importante do que sumariar as discussões teóricas realizadas por Elias na Sinopse é buscar pontuar os critérios utilizados pelo autor para definir a direção do processo civilizador. Os três principais critérios para definir as “direções” dos processos civilizadores são: a mudança na balança entre coerção externa e auto-coerção em favor da última; o desenvolvimento de um padrão social de comportamento e sentimento que engendre a emergência de um autocontrole mais estável e diferenciado; e um aumento no escopo da identificação mútua entre as pessoas (Fletcher, 1997: 82). O autocontrole a que Elias se refere não é mera questão quantitativa, mas supõe a análise da
“mudança de equilíbrio entre coerções externas e internas, e de mudança dos modos de controle. Em particular, fala de controles que se tornam ‘ainda mais’, ‘mais automáticos’ e ‘mais completos’, assim como de um movimento no sentido ‘de uma atenuação dos contrastes e de um aumento das variedades’. (...) Por ‘ainda mais’ e ‘mais automático’, Elias entende mudanças ‘psicológicas’: as oscilações das disposições individuais tornam-se menos excessivas, e os controles das expressões emocionais, mais confiáveis ou previsíveis. ‘Mais completo’ faz referência a uma diminuição das diferenças entre as ‘esferas’ variadas da vida, quer se trate do contraste entre o que é permitido em público e em particular, entre a maneira de comportar-se com determinadas pessoas e com outras, ou entre o comportamento ‘normal’ e o que é tolerado em acontecimentos excepcionais como carnavais, que são considerados momentos de exceção às regras. Finalmente, a ‘redução dos antagonismos, o aumento das variedades’ fazem referência aos antagonismos sociais – a redução das desigualdades entre grupos sociais mas, contudo, uma maior escolha nos modelos de comportamento autorizados” (Mennell, 1998: 245-246).
“Além dos três critérios citados acima, as direções dos processos civilizadores incluem: aumento da diferenciação entre instintos e controle dos instintos; aumento da pressão pelo desenvolvimento da previsibilidade; psicologização e racionalização; avanço no limiar de vergonha e repugnância; contração de comportamentos e contrastes emocionais e uma expansão das alternativas; e mudanças de uma perspectiva mais envolvida para uma mais distanciada” (Fletcher, 1997: 82).
Princípios básicos da sociologia processual
Fornecido o roteiro da obra, resta-nos agora buscar extrair quais são os princípios básicos da sociologia de Elias, ou seja, responder à pergunta: o que é fazer uma pesquisa seguindo a tradição eliasiana? Utilizar um autor como base teórica não significa citá-lo ou sequer utilizar seus achados como fonte de dados – até porque, considerando que a sociologia de Elias é basicamente empírica, utilizar seus exemplos seria um erro grave já que toda a sua discussão está baseada no processo da civilização européia. O importante, a meu ver, é compreender o que caracteriza a sociologia de Elias, sua metodologia de trabalho.
Johan Goudsblom (1977 apud Mennell, 1998: 252), aluno e discípulo de Norbert Elias, resume os princípios de sua sociologia em quatro pontos: sociologia diz respeito a pessoas no plural (figurações); as figurações formadas pelas pessoas estão continuamente em fluxo; os desenvolvimentos de longo prazo são em grande medida não planejados e não previsíveis; o desenvolvimento do saber dá-se dentro das figurações, e é um dos aspectos importantes do desenvolvimento. Vejamos cada um dos pontos.
O termo configuração ou figuração (iv) foi cunhado por Elias como contraponto à noção de homo clausus, expressão que, em seu entender, traduzia bem o estágio das ciências sociais no final do século XIX e início do XX (v). A noção de homo clausus, que noção de “personalidade fechada” pode ser vista no conceito de “fato social” durkheiminiano, no modelo teórico weberiano da ação social (mas não em seu trabalho empírico) e na idéia parsoniana de que “processos ocorrem ‘dentro da caixa preta’, na personalidade do ator” (Mennell, 1998: 188-193).
Elias, muitas vezes, utiliza imagens a fim de deixar mais claro um conceito; no caso do termo figuração, faz menção à dança, independente do estilo, se tango, rock ou outro (Elias, 1970). A dança, segundo ele, não pode ser pensada sem uma pluralidade de indivíduos dependentes e orientados reciprocamente uns aos outros. Além disso, não é entendida como uma construção mental e, portanto, como uma mera abstração ou algo que existe para além do indivíduo – ainda que possa ser entendida como relativamente independente daqueles que estão tomando parte de uma determinada peça, jamais é entendida como independente dos indivíduos enquanto tais. Ao utilizar a dança para melhor definir o termo figuração, Elias tem como objetivo principal eliminar a antítese ainda presente no uso dos conceitos de indivíduo e sociedade. Um segundo objetivo é discutir a mudança – e a partir daqui aproveito para fazer a ponte com o segundo princípio levantado acima, a respeito de as figurações estarem sempre em fluxo.
Assim como mudam as figurações formadas na dança – ora se tornam mais rápidas, ora mais lentas –, as figurações maiores, às quais chamamos sociedades, também mudam, ora de forma mais repentina e efêmera, ora de forma mais gradual e possivelmente mais duradoura.
Tão importante quanto a crítica à separação conceitual entre indivíduo e sociedade é a crítica à redução processual, ou seja, à tendência de reduzir conceitualmente processos a estados. Novamente, imagens alusivas são citadas. A frase O rio está correndo (vi) ilustra a discussão, exemplificando a redução conceitual: estaria implícita a idéia de que o rio existe em estado de descanso e que, em um determinado momento, começa a se mexer. Mas o que seria um rio parado que não um lago ou uma represa?
Na sociologia, a redução processual pode ser vista em distinções conceituais entre o ‘ator’ e sua atividade, entre estruturas e processos, objetos e relações. Conceitos tais como normas, valores, papéis, classe social, etc. muitas vezes parecem existir independente dos indivíduos, o que, para Elias, é inapropriado. Para o autor, são necessários conceitos mais afins com o estudo de figurações, ou seja, que tenham como princípio as relações entre pessoas.
“Obviamente, o mapeamento de interconexões sociais entre pessoas individuais torna-se impraticável se o objeto de interesse é a sociedade mais extensa, formada por centenas, milhares ou milhões de membros. (...). Mas a imagem de uma rede complexa pode ser guardada na mente. As várias formas de unidades sociais coletivas das quais os sociólogos falam, tais como famílias, vilas, cidades, fábricas, escolas, burocracias e classes, podem ser entendidas como várias formas de nós e entrelaçados, redes mais ou menos conectadas e atadas por meio de redes mais dispersas. Essas redes, nas quais as pessoas são presas em alianças, conflitos e balanços flutuantes de poder, têm dinâmicas próprias, cujas características nem sempre são fáceis de perceber, tanto por sociólogos quanto pelas próprias pessoas nelas emaranhadas. O entrelaçamento das ações leva à emergência de padrões e processos aparentemente independentes de qualquer ação individual e além de seu controle.” (Mennell, 1998: 258).
O terceiro ponto levantado acima, acerca dos desenvolvimentos de longo prazo, é muito importante para o autor e, nesse tópico, possui posição central a discussão sobre o motor desse desenvolvimento, quer dizer, se são ou não processos planejados.
Elias coloca-se contra a idéia de uma sociologia focada principalmente no presente de Estados-Nações entendidos enquanto sistemas isolados. Isso seria uma conseqüência de, ao longo do processo de negação das teorias evolucionárias e do conceito de progresso dos séculos XVIII e XIX, ‘o bebê ter sido jogado fora junto com a água do banho’.
“A preocupação sociológica vital com observar e explicar os processos de longo prazo foram rejeitadas juntamente com elementos que eram etnocêntricos, teleológicos e metafísicos e, portanto, corretamente descartados. O que surgiu então foi uma história a-teórica na qual faltava qualquer idéia de estrutura e uma sociologia focada principalmente no presente de Estados-Nações vistos como sistemas isolados. (...) Elias argumenta que essa ‘fuga da sociologia para o presente’ ocorreu em parte juntamente com a dominação de estáticos modelos americanos de teoria e pesquisa, e parte em conjunto com o aumento da participação de cientistas sociais em planejamentos do Estado” (Dunning and van Krieken, 1997: 353).
É incorreto tentar explicar eventos sociais simplesmente em função das ações humanas intencionais: os processos são engendrados pelo entrelaçar de ações intencionais e planos de muitas pessoas, mas nenhuma delas realmente os planejou ou desejou individualmente (Elias, 1997b: 360). Nas palavras do próprio autor,
“a interpenetração de indivíduos interdependentes forma um nível de integração na qual as formas de organização, estruturas e processos não podem ser deduzidos das características biológicas e psicológicas que constituem os indivíduos” (Elias, 1970: 50).
Por fim, a quarta e última característica da sociologia eliasiana diz respeito ao desenvolvimento do conhecimento. O principal problema a ser enfrentado por uma teoria do conhecimento é entender como os conceitos se transformam e se tornam mais adequados e apropriados à análise do processo social. A crítica do autor tanto à sociologia quanto à filosofia do conhecimento é que são estáticos. Dessa forma, devem ser transformados em estudos processuais por meio do estudo do desenvolvimento dos próprios conceitos. Da mesma forma que os processos culturais estão relacionados ao processo da civilização, o conhecimento não é algo separado da sociedade – uma mudança no primeiro é também um dos aspectos de uma mudança no segundo.
Notas
(i) Mestre e doutoranda pelo Departamento de Sociologia da FFLCH / USP. O presente trabalho constitui parte da introdução da tese da autora, a ser defendida em dezembro de 2005.
(ii) Quando foi lançado, o livro O Processo Civilizador fez muito pouco sucesso. Como lembra Mennell (1998: 3), aquela realmente não era uma boa hora para o lançamento de um livro escrito em alemão por um judeu e que, sobretudo, falava sobre civilização. Para uma visão geral das resenhas publicadas à época, ver Goudsblom, 1994.
(iii) Esse ponto nos dá uma pista sobre como Elias trabalha seu material empírico: os livros, pinturas, etc., de diversas épocas históricas, são utilizados para entender os próprios valores da época e da classe que representam. Por exemplo, utiliza poemas líricos para entender as diferenças entre diversos países (Elias, 1980). Enquanto o “‘processo civilizador’ refere-se a mudanças na estrutura da personalidade, ‘processos culturais’ referem-se a mudanças nos padrões simbólicos produzidos pelas pessoas”. Esses dois processos, afirma o autor, são inseparáveis, assim como o desenvolvimento da economia, do conhecimento, etc. também devem ser relacionados ao processo civilizador.
(iv) Há grande discussão nos grupos de sociólogos adeptos da sociologia de Norbert Elias a respeito do uso do termo configuração ou figuração. Essa questão não advém de problemas de tradução do alemão para o inglês; o próprio autor, cuja obra foi escrita em sua maior parte em inglês, utilizou ambos os termos. Em grande parte de sua obra, utiliza “configuração”, palavra escolhida com o principal objetivo de fazer face ao termo parsoniano “sistema”. Apenas mais tarde em sua carreira é que passou a questionar a palavra em si, não seu significado. O ponto que incomodava Elias é que, no latim, o prefixo con significa exatamente “com”, ou seja, se figuração (figuration) quer dizer padrão (em inglês, pattern), con-figuração (configuration) quereria dizer com padrão (with pattern). Entretanto, como o objetivo do autor era entender o padrão em si, o prefixo con passou a ser visto como redundante e ele passou a preferir o uso de figuração (Landini e Passiani, 2001).
(v) A crítica de Elias não dizia respeito apenas à sociologia da virada do século XIX para o XX. Para ele, a concepção de homo clausus – que significa “homem fechado em si mesmo” ou “personalidade fechada” – esteve presente na filosofia ocidental desde Platão, teve forte influência sobre filósofos do Renascimento como Descartes, Locke e Kant e pode também ser vista em sociólogos como Durkheim, Weber e Parsons. A tanto incomodava Elias, pode ser entendida como a dualidade entre sujeito e objeto, entre indivíduo e sociedade e significa o entendimento do indivíduo como um ser atomizado e completamente livre e autônomo em relação ao social. O conceito de figuração, em contraposição, busca expressar a idéia de que a) os seres humanos são interdependentes, e apenas podem ser entendidos enquanto tais: suas vidas se desenrolam nas, e em grande parte são moldadas por, figurações sociais que formam uns com os outros; b) as figurações estão continuamente em fluxo, passando por mudanças de ordens diversas – algumas rápidas e efêmeras e outras mais lentas e profundas; c) os processos que ocorrem nessas figurações possuem dinâmicas próprias – dinâmicas nas quais razões individuais possuem um papel, mas não podem de forma alguma ser reduzidas a essas razões (Goudsblom e Mennell, 1998). De forma resumida, o termo figuração pode ser definido como “redes formadas por seres humanos interdependentes, com mudanças assimétricas na balança de poder” (Bentham van den Bergh, 1971 apud Mennell 1998: 252), enfatizando o caráter processual e dinâmico das redes criadas por indivíduos.
(vi) Outro exemplo bastante usado em língua inglesa é The wind is blowing. Entretanto, ao traduzir para o português (está ventando) a discussão perde o sentido, já que não há sujeito na frase (não dizemos o vento está ventando).
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