Artigo - Como ensinar a sociologia?

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O desenvolvimento inadequado de um conteúdo sociológico crítico pode ter como conseqüência a reprodução de valores pré-científicos. Por isso, fazem-se necessárias algumas considerações metodológicas para auxílio no desdobrar do conteúdo, de tal forma que se assegure o real conheci­mento. Para garantir que isto ocorra, ressaltamos a necessidade de o con­teúdo ser desdobrado a partir de um movimento contínuo de problema ti­zação e teorização. Devemos esclarecer o significado desse movimento, entretanto.
Problematização e teorização

A problematização de questões de senso comum, presentes em todos nós, deve ser sempre o primeiro momento, o ponto de partida das ativi­dades. Alertamos que essa problematização não deve ser confundida com um simples arrolar de acontecimentos de nossa vida. Ao contrário, pro­blematizar significa criar uma situação que desperte no aluno a necessidade de entender os fenômenos de seu cotidiano de outra perspectiva que não a de senso comum. Em outras palavras, significa mobilizá-lo para que per­ceba nos fenômenos sociais particulares uma dimensão geral (teórica).

É comum entender que um curso de Sociologia torna-se crítico porque lida com o cotidiano do aluno. Algumas tendências pedagógicas da atua­lidade têm enfatizado a importância de partir da realidade vivida pelo aluno; nesse sentido, admite-se que o conteúdo é algo que vai se construindo no decorrer do ano letivo, através das questões que o aluno coloca ao pro­fessor. Não temos a pretensão de negar a importância dessas tendências pedagógicas, mas é fundamental não se limitar à percepção de que o con­teúdo é algo que parte apenas do aluno: não se pode negar a existência de uma soma de conhecimentos que diferem das concepções de senso comum por possuírem um caráter sistematizado e que são importantes inclusive para transformar o mundo.

Deve-se ter cuidado com metodologias de ensino que afirmem partir da realidade do aluno, mas que apenas justificam a atitude de lidar com noções de senso comum, negando sutilmente aos alunos o direito ao saber científico. Não se deve negar o saber cotidiano da população; porém, não devemos reduzir a Sociologia a uma pura catalogação e reprodução desse saber de senso comum. Quando nos referimos à problematização, afirma­mos que o saber cotidiano é importante no aprendizado da Sociologia, mas não devemos atuar apenas nessa instância do conhecimento. Devemos utilizá-la sim, na motivação e no despertar da reflexão rigorosa e sistema­tizada sobre a vida social. A problematização, assim definida, é o ponto de partida para chegar à teorização das relações sociais. Assim procedendo, podemos contribuir para o surgimento de uma nova prática social.

Entendemos que determinados momentos do desenrolar de cada sub­item do programa são destinados à problematização do conteúdo, para que o aluno sinta a necessidade de conhecê-lo mais profundamente para en­tender melhor a sua vida. Essa problematização do conteúdo pode dar-se por meio de determinadas técnicas. Em outro momento, o conteúdo pode desdobrar-se na perspectiva teórica. Esgotado esse momento - de teori­zação -, abre-se terreno para nova problematização de outro aspecto do conteúdo ainda não explanado, e assim por diante.

Aula expositiva ou dinâmica de grupo?

Para o desdobramento de uma metodologia de ensino que vise garantir a apreensão do conteúdo por parte do aluno, o professor exerce um papel fundamental. Ele não é apenas um orientador, é organizador e transmissor do conhecimento crítico. O aluno, por sua vez, também é um organizador e transmissor do conhecimento. Esse conhecimento, porém, muitas vezes apresenta-se desordenado e permeado por noções de senso comum, cal­cadas na experiência do aluno. É um conhecimento que não pode ser desprezado, uma vez que consiste na matéria-prima a ser trabalhada pelo professor. Mas, se partirmos do princípio de que a pura catalogação do saber de senso comum explica a dinâmica da sociedade contemporânea, a Sociologia passa a ser uma ciência supérflua. Por isso a aula de Sociologia não deve resumir-se a um espaço para a troca de concepções não refletidas criticamente.

A tarefa primordial do professor é portanto relacionar o conhecimento de senso comum ao conhecimento científico, capacitado que está por uma carga maior de leituras, pelo acesso às regras de reflexão sistematizada etc. Foi nesse sentido que negamos o papel do professor como mero orientador. afirmando-o como agente sistematizador do conhecimento: aquele que deve ser capaz de indicar a diversidade de pensamentos possíveis, quando se imagina existir um único pensar.

Com base nessas considerações, afirmamos a aula expositiva como um recurso importante no desenvolvimento de um curso de Sociologia, pois é o momento que possibilita a sistematização dos conhecimentos. O aluno, por si só, dificilmente percorrerá um método de estudo, pois lhe falta a base de informações que integram o conteúdo. Por isso a figura do professor é importante: em sua exposição, ele coloca dados e argumentos teóricos a serem refletidos pelo aluno. No entanto, uma aula expositiva mal pre­parada pode levar esse professor a uma reprodução disfarçada do senso comum. Isso significa que o professor necessita cada vez mais se definir também como produtor de conhecimentos, o que, em Sociologia, significa estar em permanente contato com livros, elaborar pequenos textos a partir de leituras, participar da discussão da experiência de outros professores. A ponto de, no momento em que prepara a aula, ser capaz de reproduzir os vários "pontos de vista" sobre aquele conteúdo.

A aula expositiva representa um dos momentos do processo de teo­rização. Nele o professor deve fornecer um conjunto de informações or­ganizadas de tal maneira que torne o aluno capaz de entender o conteúdo e refletir sobre ele. Entendimento e reflexão que levem o aluno a perceber que vários de seus pré-conceitos sobre as relações sociais não são sinônimo da realidade social. Ao fornecer informações novas, a aula expositiva pode ser o momento de demonstrar que a sociedade se organiza também através das aparências. E que, para chegarmos à sua essência, é necessário uma reflexão diferente da que realizamos quando estamos diante das questões práticas do nosso cotidiano.

Por outro lado, a aula expositiva deve ser intercalada com dinâmica de grupo. Se a exposição do professor pode garantir o desdobramento do conteúdo, a dinâmica de grupo ajuda no questionamento das concepções do senso comum, motivando e despertando o aluno para a importância de relacionar os fatos "isolados" do seu cotidiano com a totalidade social. Essa dinâmica pode contribuir também para despertar a necessidade de refletir teoricamente sobre o que é proposto pelo conteúdo. Por último, ela é importante ainda porque um curso de Sociologia feito apenas por exposições do professor corre o risco de apresentar o conteúdo como algo distante da realidade vivida pelo aluno. A dinâmica de grupo representa então o momento para uma reflexão mais livre, criadora e motivadora, quando com outras técnicas, o professor possibilita que o aluno construa aspectos do conhecimento a serem reelaborados nas aulas expositivas. Em resumo, dinâmica de grupo constitui momentos que dão sentido ao desen­rolar do conteúdo proposto.

Ela pode ser organizada e aplicada das mais diversas formas, e cabe ao professor a tarefa de sua elaboração, bem como a escolha do melhor momento de seu emprego. Neste projeto sugerimos apenas que em cada unidade deva existir certo número de aulas destinadas a essa atividade. Mesmo ficando a critério do professor, a título de ilustração sugerimos que se recorra à dinâmica de grupo em que o aluno tenha chance de lidar com imagens (fotos, desenhos), com diversas modalidades de texto (artigos de jornal, poesias) e também com sons (mensagens gravadas, músicas). Isto possibilita que a dinâmica de grupo assuma também a forma de debates, nos quais o aluno fica livre para colocar as questões que deseja, nesse caso cabendo ao professor o papel de orientador da atividade, de modo a re­lacioná-la com o conteúdo proposto.

Com a dinâmica de grupo de um lado e as aulas expositivas de outro, está se possibilitando a existência do movimento problematização e teori­zação.

Uso ou não do livro didático?

O professor na escola brasileira cada vez mais tem organizado suas aulas a partir das informações contidas nos livros didáticos. Esta é uma prática comum tanto na escola primária quanto no 2° grau. No caso espe­cífico da Sociologia, a quase inexistência de textos didáticos obriga muitos docentes a uma prática altamente criativa de elaboração de seus próprios textos, a partir da leitura de livros não-didáticos.

De qualquer modo, essa prática é ainda minoritária devido à baixa remuneração a que o professor está sujeito, a uma jornada de trabalho extenuante, à qual se agregam dificuldades de locomoção de um estabe­lecimento de ensino a outro. Esses, dentre outros problemas, fazem com que a grande maioria que leciona Sociologia no 2° grau também se apegue à utilização dos poucos livros didáticos existentes, como se fossem a tábua de salvação para as precárias condições de elaboração do seu curso. Muitos teóricos, ao analisar recentemente as informações dadas pelos livros didá­ticos, acabaram por perceber e denunciar os graves problemas que acom­panham esse tipo de texto: trazem informações que nem sempre priorizam o entendimento das relações sociais fundamentais; apresentam os conceitos fora do contexto histórico em que foram ou são produzidos; a noção de evolução social é tratada linearmente; a sociedade define-se como um corpo homogêneo, tendente ao equilíbrio e à harmonia; quando aparecem, os problemas sociais são tratados como "doenças passageiras" dessa sociedade, cujas causas são atribuídas a condutas individuais ditas desviantes. Por essas e outras razões, são livros que valorizam uma visão de mundo acrítica.

Cabe lembrar, porém, que as informações contidas nesses livros didá­ticos não são necessariamente inúteis. Ao contrário, estruturam-se até com certo rigor científico. No entanto, são textos que explicam a realidade social do ponto de vista da classe dominante. Por isso, o professor que os adota na maioria das vezes acaba reproduzindo esse ponto de vista particular como se fosse realidade universal. O livro didático, nessa situação, desem­penha um papel puramente ideológico: apresenta a visão de mundo de uma classe como a única possível. Assim, passa a ser um instrumento eficaz de educação sob os padrões e interesses da classe dominante. Diante dessa realidade, surgem as questões: adotar ou não o livro didático? Criar um novo livro didático, substancialmente diferente? Teria o professor dispo­nibilidade para isso?
Temos claro que abandonar o livro didático não é uma atitude simples.

Em várias regiões do Brasil esse tipo de texto acaba sendo o único a que a população tem acesso. Por outro lado, as dificuldades com que o professor se defronta constantemente acabam por limitá-lo a tal ponto, que o em­prego do livro didático passa a ser o único meio eficaz de preparar sua aula. Surge o dilema: até que ponto é possível, na realidade educacional em que vivemos, prescindir do livro didático de que hoje dispomos?

Se abandonar o livro didático é difícil, por que não começar a refletir sobre o melhor uso que se pode fazer dele? Talvez o mais importante não seja trocar o livro adotado e, sim, mudar substancialmente o modo como é empregado.

Para realizar um bom curso de Sociologia, não basta prescindir do livro didático. Antes, é necessário que o professor mude a sua postura em relação à forma como vem utilizando esse recurso. O primeiro passo é não confundir as informações do livro com o conteúdo de seu curso de Sociologia. Nenhum livro didático, por mais completo que seja, deve subs­tituir um conteúdo preparado pelo professor. Na situação atual, o mais interessante talvez seja o professor organizar os alunos em grupos, indi­cando diferentes livros, de tal modo que na sala de aula exista confrontação entre as informações dos diversos textos. Diferentes pontos de vista sobre uma mesma realidade social podem contribuir para que as informações úteis ao desdobramento do conteúdo proposto se ressaltem ante informa­ções limitadas. Procedendo desta forma, o professor passa a ter um distan­ciamento crítico do texto, emprega um método de utilização do livro que permite até aproveitar bem um texto considerado deficiente. Esse distan­ciamento crítico se constrói também quando o professor adota uma postura questionadora das informações que o livro contém, confrontando-as com a realidade dos alunos.

Algumas perguntas fundamentais devem acompanhar o professor no decorrer do ano letivo: Qual é a realidade apresentada pelo livro didático? Ela é vivida por quem? Haveria uma outra realidade? Qual? Por que o texto não a apresenta? Com essas preocupações em mente, concluímos afirmando que não é impossível associar a proposta de conteúdo apresen­tada nesse projeto com a utilização de livros didáticos. Essa é uma possibilidade que depende, como vimos, da maneira como são empregados. De­pende do distanciamento crítico que se tenha do texto, não confundinde o conteúdo do curso com as informações do livro. Por último, depende de confronto da realidade apresentada no texto com aquela vivida pelo aluno.

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