Entrevista - Fernando Henrique Cardoso - Em nome da sociologia




Entrevista


Em nome da sociologia

Em entrevista exclusiva, Fernando Henrique Cardoso fala a respeito de sua formação, da relação entre utopia e ação na política e da importância da comunicação para um homem público
por Renato Janine Ribeiro

Presidente da República entre 1995 e 2002 e ministro da Fazenda no período de formulação e implementação do Plano Real, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso esteve - e ainda está - no centro de acaloradas polêmicas e na mira da opinião. Coisas da política. "Jamais quis ser ministro dessa pasta [da Fazenda], jamais pensei em ser Presidente da República", afirma o intelectual que já possuía renome internacional, como pesquisador e professor de universidades de ponta, quando ainda no final da Ditadura Militar iniciou sua caminhada de político, culminando em duas vitórias eleitorais consagradoras que transformariam o acrônimo FHC em símbolo, para o bem e para o mal, de um período da História do Brasil. A Era FHC.
Entre críticas e elogios, o político FHC, mesmo no olho do furacão do cotidiano de Brasília, jamais perdeu de vista a sua condição de sociólogo e analista respeitado da sociedade e da política contemporâneas. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, discípulo de Florestan Fernandes e autor de clássicos da sociologia brasileira como Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional, Mudanças sociais na América Latina e Dependência e desenvolvimento na América Latina (com Enzo Faletto), Fernando Henrique Cardoso é o entrevistado desta edição da Sociologia Ciência & Vida.

Além de presidir o Instituto Fernando Henrique Cardoso (www.ifhc.org.br), FHC atualmente é conferencista, professor, membro de conselhos consultivos e mantém-se ativo e influente no debate político. "Não tenho os mesmos recursos retóricos de Lula", afirma FHC, sem temor, sobre o magnetismo das analogias do atual presidente. Mas acrescenta, habilmente: "Eu nunca tive problema para me comunicar", lembrando de sua formação.
"Sempre fiz muita pesquisa de campo, então tive de falar de jeito acessível". (Da redação).

O senhor se considera mais um sociólogo ou um cientista político? Ou um sociólogo que passou para a ciência política?
Minha formação foi sociológica. Meu modo de raciocinar, meu primeiro impulso, é muito mais de ver as forças sociais, as estruturas, do que propriamente as questões ligadas ao poder, ligadas à dinâmica do processo político. Claro que com o tempo eu conquistei uma cátedra de Ciência Política, tive de ler muita literatura dessa área e, além disso, me tornei político mas, se você pensar em termos de como eu penso o mundo, penso mais como sociólogo. Quando recebi o título de Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP, Francisco Weffort me saudou dizendo que eu era o sociólogo das coisas emergentes. Isso, na verdade, não é muito de sociólogo. O sociólogo tem mais interesse pelo que se repete, pelas estruturas. Eu sempre tive muito mais interesse pelo que está surgindo.

Sugiro a hipótese de que a sociologia lida com os males da modernidade, a ciência política propõe soluções por meio da modernidade e a antropologia vê a modernidade com ceticismo.
Sempre tive mais distanciamento da antropologia. A perspectiva do antropólogo é que, seja qual for o grupo, ele tem um valor enorme. Mas, sim, o sociólogo lida com os males, quer dizer, as contradições, os conflitos, com todo esse lado mais pesado da vida. E o cientista político tem que ter no horizonte uma utopia: como você muda o que está aí. Por isso disse que era contraditório ser sociólogo e ao mesmo tempo me interessar pelo que está surgindo. Porque geralmente é mais o cientista político que tem essa sensibilidade pelo que está surgindo.
Mas no meu caso, quando estudei, foi na USP, na faculdade que então se chamava Filosofia, Ciências e Letras. A sociologia era um departamento de ciências e o que nós tínhamos, na verdade, era sociologia, antropologia, ciência política e economia. E li muito economia. Numa certa altura até hesitei, porque o professor de economia na época chamava-se Paul Hugon, era francês e queria que eu fosse economista. Eu ainda era aluno da faculdade. Florestan Fernandes, que era meu grande inspirador, me arranjou um emprego na Faculdade de Economia, onde fui auxiliar de pesquisa e assistente de história econômica. Depois trabalhei na CEPAL, diretamente com Raúl Prebisch: minha formação reforça o que lhe contei do interesse pelas questões mais estruturais, por causa da economia. Numa certa altura, eu lia bastante economia. O que eu não sou capaz é de ler economia atual, porque economia atual é matemática. São modelos... Mas a economia política, sim. E como li Marx inteiro, todo o Capital e toda a história econômica da mais-valia, bem como Keynes, isso marca muito as pessoas.

Queria perguntar sobre os chamados três clássicos das ciências sociais, Marx, Durkheim e Weber.
Quando entrei na faculdade, em 1948 ou 49, estava interessado em duas coisas, literatura e socialismo. Eu tinha tido até a impropriedade de fazer um pouco de Literatura. O socialismo era para mudar o mundo. Fui parar na faculdade de Filosofia porque, em Águas de Lindoia, conheci o historiador de literatura Fidelino de Figueiredo, que me recomendou que cursasse a Faculdade de Filosofia, onde ele lecionava. Foi um choque, porque o curso de filosofia eram os Pré-Socráticos. O primeiro trabalho que escrevi na vida foi sobre Parmênides.
Sociologia era Florestan quem dava. Ele estava escrevendo aFunção Social da Guerra na Sociedade Tupinambá. Só falava de antropologia e de métodos funcionalistas. Bem mais tarde, escreveu os Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica (1959), que era um título complicado, e criou os três "santos": Marx, Durkheim e Weber. Florestan era funcionalista. Mas já tinha traduzido um texto de Marx, a Introdução à Crítica da Economia Política. Ele conhecia Marx. Mas nós queríamos saber mesmo de socialismo, marxismo e na escola não havia nada disso. O que mais apaixonava era Karl Mannheim, que escrevera Ideologia e utopia, e se aproximava mais das minhas preocupações da época.

Lemos os principais livros de Durkheim; de Weber, lemos Economia e Sociedade, basicamente, e a Ética Protestante. Não sabíamos muito bem o que fazer com aquilo tudo. Depois de 1955, começamos a ler por conta própria Marx, que não entrava no currículo da universidade na época. Foi minha geração que o introduziu - eu, Giannotti, Otavio Ianni, Bento Prado, que nunca foi muito marxista Fernando Novaes. Estivemos anos lendo O Capital e pouco a pouco o levamos para a Universidade. Florestan via isso com suspeita.

Por quê?
Porque ele era funcionalista. Florestan, naquele tempo, era o homem da sociologia empírica, da pesquisa, e tinha medo de uma recaída no ensaísmo. Estávamos lendo Lukacs. É curioso isso. Ele depois não pensou mais assim. Mas achava que íamos parar de fazer pesquisa e começar a usar conceitos.

Não era um receio político.
Não! Metodológico, de formação. Aliás, nós também víamos o marxismo como método, mais do que como política. Quando, nos anos 50, fomos fazer nossas teses, tratando de negros, o mestrado foi uma pesquisa que fiz com o Otavio Ianni em Florianópolis, depois Otavio fez uma no Paraná e eu no Rio Grande do Sul também sobre os negros - só que mudei o enfoque de relações raciais para entender as estruturas a fim de compreender a escravidão. Meu problema era o limite do capitalismo com a escravidão. Estudei as charqueadas do Sul e as comparei com Uruguai, Argentina; mas isso já reflete toda a minha leitura sociológica, econômica, Marx e outros. E se você for ler - eu só reli recentemente - a introdução desse trabalho, era uma discussão metodológica. O curioso, porque eu já tinha muito Weber e muito Marx na cabeça, é que naquele momento quem nos deu, psicológica e intelectualmente, o caminho para juntar essas coisas foi Sartre, que tinha escrito Questão de método, mostrando como era possível usar a dialética numa análise de processo. Usar Marx, usar Weber e usar Sartre é uma coisa que não é habitual... Roger Bastide, de quem fui aluno e depois assistente, publicou na França um sumário sobre meu livro, Capitalismo e escravidão, dizendo que esse livro não poderia ter sido escrito na Europa.
Florestan foi visto como marxista, mas não nessa época. Em suma, tudo dependia muito do tema a estudar. Se você for analisar relações estáveis de longo termo é Durkheim, se for analisar relações processuais de mudança é Marx e se for analisar algo que é emergente é Weber.

Isso não ficava muito compartimentado? Qual sua opinião a respeito dessa divisão?
Acho que a divisão é formal. É uma análise de processo, histórico-estrutural. As coisas mudam, você tem que analisar essa mudança; mas tem que analisar as estruturas, e o modo como as coisas mudam é histórico. Minha análise, mesmo, é histórico- estrutural. Os processos reiterativos não me chamam a atenção. Eu não teria a capacidade, a paciência que o Florestan teve de analisar a função social da guerra. Sempre olho de maneira mais histórica as coisas - e aí entra o marxismo. Não estou dizendo que assumo a dialética marxista, a filosofia marxista, que implicam em tese, antítese e síntese. Gosto muito do trabalho sobre a microdialética: a história não tem telos, não tem a classe universal. No dia a dia nem penso nos termos marxistas, mas é o que está no fundo da minha mente.

Seria válido sugerir que a sociologia coloca certos problemas que a ciência política tenta (e insisto: tenta) resolver? Como distinguir as duas áreas de sua atuação?
Acho que sim. Vamos pegar em termos concretos. Recentemente fiz uma conferência sobre Joaquim Nabuco na Academia Brasileira de Letras. Comparei-o com Tocqueville, eles têm um background semelhante, ambos sendo aristocratizantes, vêm da velha estrutura, foram para os Estados Unidos, foram para a Inglaterra, se entusiasmaram. Peguei um livro do Tocqueville que se chama Lembranças de 1848 - aliás, li a introdução que você escreveu a ele - e comparei com o Dezoito Brumário de Marx.
E é muito interessante porque, na verdade, eles são complementares. Tocqueville está analisando o dia a dia, as coisas, o detalhe, está vivendo aqueles personagens, de carne e osso. Marx é mais sociólogo, está vendo os processos, as classes, como quando compara os camponeses a um saco de batatas.
Tocqueville mal fala em classes. Aí você vê bem a diferença. O político analisa o acontecimento, tem um problema para o qual precisa dar solução. O sociólogo analisa o acontecimento também, mas o já acontecido e por que aconteceu assim, porque teve um peso das estruturas.

Como fica a questão da liberdade? Para um sociólogo, vendo as estruturas, a ação humana será mais limitada? Para um cientista político, mais ainda para um político, a ação humana será mais decisiva?
Marx diz que o homem faz a história, dentro de limitações, mas faz a história. Eu sou do lado de que a ação humana tem uma grande margem de possibilidade de atuar, se não, não há saída. Acho até curioso: a sociedade contemporânea tem um peso imenso das estruturas, inclusive a televisão, sobre a qual você escreveu. Mas hoje a Europa está um caos, com crise financeira e tudo mais: falta ator na Europa. Hoje o único ator lá é Putin, ele sabe o que quer e faz, como de Gaulle, Mitterrand, Helmut Kohl, ou a Thatcher, Felipe González, Mario Soares. Não estou julgando o que eles são ou foram! Com todo o peso das estruturas, falta ator na política europeia, hoje. O ator, mais do que fazer, tem que simbolizar, especialmente no mundo da mídia, do espetáculo. Um exemplo é o Lula: ele simboliza. Nem sempre o que ele diz é bom, mas está simbolizando. O próprio Obama não só simboliza mas atua, manda recado para os europeus. O ator muda as condições que estavam dadas.
Se você não tiver quem faça, a coisa não tem saída. Nesse caso, os males que a sociedade apresenta não encontram solução, solução que é política. Acho incompleta uma análise só das limitações estruturais. Reli recentemente Maquiavel, escrevendo um prefácio para o Príncipe, numa nova edição que vai sair agora. É curioso porque ele tem duas classes: os que mandam e os que obedecem. Tem o líder, mas não tem ética, não tem utopia.

Este é um assunto que me interessa e que estou pesquisando agora: a utopia e o realismo na forma de tratar as relações humanas. Dois livros estão completando 500 anos, O Príncipe e Utopia, dois livros excepcionais de autores que não leram um ao outro, totalmente opostos um ao outro - e o senhor fala dos temas caros aos dois. Como relaciona as duas coisas? Dizia que falta utopia a Maquiavel...
Eu acho. Mas utopia sem realismo também não vai. Político não é quem tem utopia e sim quem faz o caminho, é quem cria condições para isso. Se você não estiver apontando para algum lugar, se não tiver utopia, é impossível agir politicamente. Tem que ter visão, mesmo que você não chegue lá. Se tiver só utopia, pode ser pregador, poeta, mas não é político. Político faz o caminho para tentar chegar mais perto da utopia. Aí tem que ter realismo. Um utópico puro não pode ser político. Já um realista puro pode ser político, mas no meu modo de entender é um mau político, porque dificilmente ele vai au-delà [mais além]. Vai ficar amarrado num universo pequeno.

Quando o senhor disse que faltavam atores na política europeia, queria dizer que faltam utopistas? Porque Putin não é um utopista. Mas é um ator...
Ele é um realista, um ator. Ele não é utopista no nosso ponto de vista. Tive uma conversa com Putin que me marcou bastante. Ele era presidente da Rússia. Estive lá e há um momento em que os presidentes ficam sozinhos. Putin fala inglês, foi muito simpático. Numa certa altura ele disse: "Eu não entendo os americanos. Eles agora falam de novo sobre a Guerra nas Estrelas, escudos espaciais e tudo mais, mas guerra contra quem? Só quem pode competir com eles somos nós. E não queremos guerra, meu problema é outro, meu problema é integrar a Rússia." Quer dizer, ele tinha essa utopia. Integrar a Rússia inclui a questão da Chechênia. A Rússia, queiramos ou não, é ocidental. Mas nem toda a Rússia. O Putin é o lado ocidental da Rússia, quer "salvá- la" da penetração islâmica dissidente.
Essa é a visão dele. Ele não entendia por que os Estados Unidos os tratavam como inimigos, quando o inimigo deles era outro: a desagregação do império russo. Ele tem essa visão; o que não tem é nossa utopia, propriamente ocidental, da democracia e da liberdade. O negócio dele é a nação e o Estado. Podemos dizer que é uma utopia, embora seja restrita. Porque a utopia verdadeira é da humanidade, uma verdadeira utopia para todos.

Quais são as condições que permitem que em certos momentos surjam atores políticos fortes, que lideram - e que em outros momentos se fique num marasmo?
É curioso, qual é a pulsação das sociedades? Eu estava na França em maio de 68, a França era morta e de repente começou a pulsar, como se fosse um curto- circuito que pega fogo. O curto-circuito não se dá necessariamente, a la Marx, nas questões principais. Pode se dar em outros planos. Mas as sociedades não ficam sempre pulsando, fervendo, também param de ter essa pulsação. Eu diria que, na questão da liderança, há momentos em que a sociedade precisa - essa é uma coisa vaga, intuitiva - de uma coisa e está disposta a ouvir. Não basta haver a verdade. É preciso que as coisas, os problemas tenham tal magnitude que a sociedade se disponha a ouvir. Vou falar uma coisa com certa imodéstia: a inflação. Acabamos com a inflação, quase posso dizer que eu acabei com a inflação. Por quê? Porque a sociedade não aguentava mais. Muitos planos, aquela tragédia. Qualquer um podia acabar com a inflação? Em algum momento, alguém acabaria. Mas naquele momento, de alguma forma, eu tinha condições de convencer o congresso, o governo e o país.

Nada dizia que eu pudesse fazer isso, eu não era nem economista; virei ministro da Fazenda por acaso, era sociólogo, jamais quis ser ministro dessa pasta, jamais pensei em ser Presidente da República, o que dizem é mentira. Nunca imaginei essas coisas.
Quando perdi as eleições para Jânio em São Paulo [em 1985], nem pensava em voltar ao governo. Era muito mais natural em mim dar aula na academia. Mas, de alguma forma, naquele momento [do Plano Real, em 1994] eu consegui, eu fui um ator no processo. Veja Lula, é a mesma coisa. Há momentos em que se tem de fulanizar: quem é o fulano que fará isso? Lula é o Lula. Outro não faria as coisas que ele faz. É por isso que não há o telos [a finalidade que governa um processo]. E em certos momentos a sociedade requer algo, mas não encontra quem a lidere.

A sua capacidade de falar é muito diferente da do presidente Lula, mas os dois têm uma capacidade de persuasão que vai bem além de seus partidos e das fronteiras nacionais. Penso que isso é muito difícil, não se treina, não se ensina e o próximo presidente, seja quem for, provavelmente não terá na mesma proporção. Que importância tem isso na política?
Você pode falar o que quiser do Lula, mas ele se comunica. Há um vídeo dele em que está, no palácio, falando sobre a poluição, como presidente da república. É fantástico! Ele fala com a platéia e diz: "Se a terra fosse quadrada, ou retangular, não haveria o problema da poluição; mas como ela é redonda, quem polui aqui, acaba passando a poluição para o outro". Ele explica para a população que a poluição deles não é só deles, ela nos atinge também e vice-versa. Ele comunicou. Ele fala com o país o tempo todo e de uma maneira não culta, mas e daí? O importante é se comunicar.
O Jânio comunicava. Acho que, no Brasil, Jânio foi o primeiro que entendeu o que é a comunicação de massa. Ele pegava uma gaiola com o rato dentro para simbolizar o político ladrão, a vassoura que ia limpar, a caspa [que esparramava na roupa para dar a impressão de pessoa simples]. Por um lado, era um farsante. Por outro, estava passando a mensagem pelo modo não verbal.

Já Lula passa mensagens verbais. Explica. Transmite. Eu nunca tive problema para me comunicar. Sempre me diziam que não teria voto porque não sabia falar com o povo, mas nunca tive o problema de fazer com que as pessoas entendam o que digo.
Eu era um sociólogo de campo, trabalhava com a favela, com negros, com pobres, com gente não culta; sempre fiz muita pesquisa de campo, então tive de falar de jeito acessível. Segundo, tive que dar aulas em línguas que não sei, francês eu sei [desde cedo], espanhol eu não sabia. Tive que dar aula no Chile - tive, não, eu gosto de lecionar - e qualquer palavrinha que não fosse em espanhol eles não entendiam. O português é muito longínquo da vida do estudante chileno. Tive que me virar com meu vocabulário espanhol que era muito pequeno, ou seja, tinha que ir direto ao ponto. Quando entrei na vida política, já tinha essa experiência de ir direto às coisas. A maior dificuldade na vida política para uma pessoa com uma certa formação intelectual é o rodeio. É rodear muito para dizer alguma coisa. Também a escolha de palavras tem que ser mais simples. Lula fala por analogia, eu não sou analógico no falar. Sou mais racional, mas uso uma razão no nível do senso comum, para que as pessoas entendam. Cada um tem um jeito mas, se não tiver algum jeito, não ultrapassar seu círculo, como é que você vai ser líder político? Não vai.

Qual diferença o senhor vê entre sua forma de se comunicar com o povo em geral e a do presidente Lula?
Lula, primeiramente, é exemplificador. Segundo, é mais afim com o que o povo está no seu dia a dia. Sempre fala da cozinha, do futebol, da mãe, da dona de casa, da família. São analogias mais simples. Não entendo quase nada de futebol - gosto, sou corintiano, mas não sou capaz de falar sobre isso. E não tenho os mesmos recursos retóricos de Lula. Meus recursos têm que ser muito menos analógicos e de imagem, e muito mais de simplicidade na expressão direta de comunicação. São diferentes os discursos. Se eu quiser imitar o Lula, vou perder, se ele quiser me imitar vai perder. Mas falamos com a massa. Antigamente isso não era necessário. Getúlio Vargas não falava assim. Ele lia discursos absolutamente cultos e chatos.

Como as pessoas apreendiam esses discursos? Elas não entendiam?
Acho que não. Elas apreendiam o símbolo. Getúlio se dirigia à massa de chapéu, charuto, jogava golfe. Isso é curioso, mas naquela época a sociedade era menos de comunicação do que hoje, e também o controle estatal era muito grande. Mas há muitas maneiras de você ser admirado. O segredo conta no imaginário popular. Getulio não era homem de muitas palavras, não explicava muito as coisas, deixava correrem soltas as imagens, mas não era uma pessoa verbalmente atraente. Talvez seu gesto mais dramático tenha sido se matar. E quando ele se matou estava na pior situação. Reverteu porque se matou.

A visão marxista da política, por considerar-se científica, deixa pouco espaço para o líder, para a ação humana. E nas últimas décadas passamos a acreditar que a democracia não tem a ver com convencimento, mas com persuasão. E há muitas formas de persuadir. Por isso, acho muito importante esse assunto.
Essa frase é boa: não tem tanto a ver com convencimento, tem muito mais com a persuasão. Convencimento é muito mais racional. Quanto mais de massa é a sociedade, mais a persuasão têm prioridade sobre o convencimento. E a teoria social democrática nasceu daí, porque mesmo quando você vê Nabuco, Tocqueville ou Jefferson, ou quem quer que seja falando sobre democracia, eles estão pensando em convencimento.

Como o senhor vê a mudança que houve do tempo deles para o nosso? A que se deve essa mudança?
É perigosa essa mudança, acho eu, porque está no limite. Você pode arrastar a massa. Fascismo tem a ver com persuasão. Veja essa confusão que temos hoje, em que a democracia é a maioria. Temos exemplos latino- americanos de pessoas com maiorias esmagadoras, porque são bons atores. Vou falar de um conhecido meu: Hugo Chávez. Conheço-o bem, fomos cinco anos presidentes ao mesmo tempo e nos damos bem pessoalmente. Estava nos Estados Unidos ou no México e liguei a televisão e estava o Chávez num comício final naquela sua tentativa de perpetuar- se no poder. Ele é muito simpático e ele é ator. Nesse comício, ele estava com uma camisa vermelha e começou o discurso falando: "Hoje não vou dizer nada, vamos cantar." Cantava: mi amor, mi Venezuela querida, muchachas... E esse foi o comício dele. No fim, disse: vamos decir sí! Isso deixou o povo inebriado, não houve um momento de convencimento, uma ideia, nada. Mas, sim, uma expressividade brutal. Quer dizer: essa coisa da persuasão é sempre um tanto perigosa, porque pode levar para qualquer lado.

Se pensarmos de outra forma. Um recorte fundamental distingue uma política liberal e uma socialista. Não acho que uma esteja certa e outra, errada. Eu preferiria que o povo elegesse uma dessas opções e não porque o outro é corrupto ou desonesto. Aqui não se trata de convencer, de provar racionalmente o certo ou o errado, mas de decidir valores. Nisso, cabe menos convencer e mais persuadir.
Você está falando em persuadir por ideias. Não por pessoas. Aí, sim.

Renato Janine Ribeiro é colunista da revista Filosofia Ciência & Vida e professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP). Sseu site é www.renatojanine.pro.br

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